Com uma trajetória que teve início ainda nos anos 1960, Antonio Fagundes se tornou estrela da televisão, do cinema e do teatro. Seu longo currículo inclui papéis marcantes na série Carga Pesada (1979 a 1981, com nova versão de 2003 a 2007) e em novelas como Renascer (1993) e O Rei do Gado (1996 a 1997). No cinema, protagonizou Villa-Lobos - Uma Vida de Paixão (2000) e Deus É Brasileiro (2003). No teatro, foi Macbeth na peça homônima de Shakespeare (1992) e, mais recentemente, o pintor Mark Rothko em Vermelho (2012), sua estreia no palco ao lado do filho Bruno, com quem retorna a Porto Alegre neste fim de semana para apresentar a peça Tribos no Theatro São Pedro. Nesta entrevista, o ator critica o que considera uma ausência de política cultural no governo federal, faz um balanço de sua trajetória e revela que se sente um "analfabyte" em meio à velocidade das redes sociais.
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Antonio Fagundes e o filho Bruno entram em cartaz em Porto Alegre com a peça "Tribos"
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Você trabalhou em inúmeras novelas, tornando-se uma estrela da TV. Dizem que a novela representa, hoje, o que o folhetim representava no século 19. A telenovela está muito mais na cabeça dos brasileiros do que os livros. Como o senhor vê esse papel social?
Nossa teledramaturgia sempre foi muito combativa, no sentido de que coloca em cena não só o entretenimento, mas também levanta problemas sociais, como preconceito, intolerância, reforma agrária, corrupção. Você vê esses temas analisados, às vezes, até com alguma profundidade, em um produto que teoricamente é feito só para entreter. Mas, ao mesmo tempo, não podemos deixar de prestar atenção ao fato de que o povo brasileiro ainda é muito conservador. Então, apesar das tentativas de algumas telenovelas de discutir mais amplamente alguns problemas, existe ainda uma resistência por parte da maioria do público em aceitar essa discussão. Mas acho que estamos caminhando. É assim mesmo que se faz, é devagar.
A novela reflete a sociedade brasileira ou ajuda a moldá-la? Ou as duas coisas?
Existe um intercâmbio aí que está sendo feito. Mas, enquanto você não tiver do outro lado, o respaldo de uma boa educação, de uma boa formação cultural, a novela sozinha não vai conseguir fazer nada. É preciso que essa discussão se amplie, que saia da sala de televisão e vá para as salas de aula e para as ruas. Aí, sim, você vai ter uma verdadeira discussão do problema. Colocar o problema só na novela das nove não vai provocar a discussão a ponto de aquele problema encontrar uma solução.
Há pouco tempo, houve uma nova polêmica com o beijo gay na cena entre Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg, que inclusive gerou uma campanha de boicote à novela Babilônia. Isso é frustrante?
Frustrante, não. É ridículo você pensar que as pessoas se comovem a ponto de rejeitarem um beijo gay, mas o fato de outro personagem assassinar uma pessoa a sangue frio não comove ninguém. Então, tem um problema aí que tem que ser analisado na cabeça das pessoas.
Olhando retrospectivamente sua carreira, quais foram os papéis que mais lhe marcaram?
Sempre deixo esse exercício para o público. Escolhi fazer os personagens e os fiz com o máximo prazer. Digo que estou ainda em processo. Se o público por acaso gostou mais de um ou de outro, eu ainda estou vivo, ainda vou fazer mais. Talvez o público mude (seu personagem favorito) pelo próximo ou talvez continue com aquele, mas aí tem a liberdade de escolher. Eu seria injusto com todos os outros (papéis) que fiz se destacasse um.
E quais os papéis que ainda tem vontade de fazer? A história da dramaturgia é enorme, passa por Shakespeare, pelos autores nacionais...
Você citou Shakespeare. Ele escreveu 37 peças. Eu só fiz uma (Macbeth, em 1992, ao lado de Vera Fischer, com direção de Ulysses Cruz). Tem mais 36 só dele. Eu diria que tem mais uns mil e oitocentos personagens que eu gostaria de fazer.
Como o senhor conjuga os projetos nas diversas mídias: TV, teatro, cinema etc.?
Se você pegar meu currículo, vai ver que nunca parei de fazer teatro. Fiz mais até do que televisão, que eu já parei de fazer certa vez. Sempre que pude, fiz tudo ao mesmo tempo, incluindo aí o cinema. O exercício, para mim, é exatamente pular de um veículo para outro e me divertir com cada um.
O senhor completou 66 anos. A passagem do tempo amedronta?
Para o ator, é a melhor coisa que pode acontecer, porque ele vai mudando de faixa e sempre tem um bruxinho velho para a gente fazer.
Atualmente, os debates públicos estão polarizados, o que parece ter sido acentuado pela facilidade de comunicação das redes sociais. Parece que a sutileza dos debates está se perdendo. Como o senhor vê esse cenário?
Eu sou "analfabyte". Não tenho computador, Facebook, Twitter ou Instagram, nada disso. Tenho uma postura não contra esses veículos, que eu acho extraordinários, mas contra a forma com que estamos usando. A peça Tribos fala um pouco sobre isso quando mostra que não nos comunicamos, que existe uma incomunicabilidade a partir da família, a partir do momento em que você deixa de conversar, deixa de se ouvir, deixa de se entender. Não adianta viver na era da informação, da comunicação. Estamos vendo essas novas formas de se comunicar destruindo coisas muito importantes. A palavra está sumindo. O Instagram está acabando inclusive com os 140 caracteres do Twitter. Acho que isso é uma fase de transição, não sabemos onde vai dar. Torço para que a gente saiba aproveitar melhor para efetivamente estabelecer a comunicação.
Mas o celular é uma questão inclusive para quem frequenta teatro e cinema. Volta e meia tem algum espectador ligando a luz da tela para ver a hora ou mesmo recebendo uma ligação.
Voltamos ao ponto da educação. Se você tem educação, você vai saber que não está sozinho na sala e que vai estar incomodando os outros. A educação determina alguns limites, coloca algumas leis de convívio, de contato, de respeito pelo outro.
O aplauso de pé, ao final do espetáculo, é uma deferência ou já perdeu o significado por ter sido tão banalizado?
No Brasil, não existe significado para isso. As pessoas acham que aplauso é sempre de pé. Antigamente, tínhamos uma certa liturgia, que incluía a vaia. Se as pessoas odiassem, vaiavam. Se gostassem mais ou menos, davam um aplauso mais chocho. Se gostassem, aplaudiam mais forte, sentados. Se gostassem muito, levantavam. Se adorassem, levantavam e gritavam. Então, você tinha uma forma de entender como a plateia tinha recebido o espetáculo. Hoje, a impressão é que as pessoas levantam para ir para o estacionamento (risos). Essa conotação de comunicação da plateia com o palco a gente perdeu.
Quais são as suas lembranças das vezes em que se apresentou em Porto Alegre?
Já fui a Porto Alegre seguramente com mais de 20 espetáculos. Sempre percebi um público muito atualizado, interessado em teatro, que gosta de participar, politicamente engajado. É tudo que queremos de um público.
O espetáculo Tribos, em cartaz neste final de semana em Porto Alegre, trata de uma surdez literal e metafórica. Alguns criticam o politicamente correto por um excesso de correção e outros o defendem como uma medida necessária. Na sua opinião, o politicamente correto vem por bem ou é um exagero?
Acho que tem uma falha trágica dentro do politicamente correto que é a ideia de que, ao se mudar o nome de uma coisa, elimina-se o preconceito. Não adianta nada eu chamar pelo nome certo se eu continuar sendo preconceituoso. Acho que essa é a falha trágica. Aí, o politicamente correto vira um excesso inútil. Achamos que chamar a pessoa de uma coisa ou de outra vai mudar a realidade. Na verdade, não. O que tem que ser mudado é a realidade, não a nomenclatura. É preciso que você entenda a diferença, que você aceite a diferença, que participe dessa diferença, e não que você simplesmente mude o nome dela.
A peça não tem patrocínio, sendo financiada apenas com a bilheteria. Como vocês chegaram a esse modelo, que envolve riscos?
A partir do momento em que você não tem o dinheiro para começar, dependendo única e exclusivamente da bilheteria, está acreditando na resposta do seu espetáculo. Acho que isso já é uma postura positiva no sentido de que você acredita tanto naquilo que sabe que o público vai sustentar o espetáculo. Tínhamos razão. Estamos há quase dois anos em cartaz e chegamos inclusive a fazer uma temporada internacional com esse espetáculo. Fomos a Portugal. Isso provou também a universalidade do texto da Nina Raine e do nosso espetáculo, que atingiu da mesma forma o público português como tem atingido o brasileiro.
Essa decisão de financiamento foi política, por assim dizer, ou teve origem em uma dificuldade de obter patrocínio?
Se você parar para pensar um pouquinho como funcionam hoje em dia o patrocínio e as leis de incentivo, acaba percebendo que se submete a uma censura às vezes pior do que na época da ditadura. Porque é uma censura duplamente exercida e econômica. Você submete seu texto à aprovação do Ministério da Cultura, que aprova ou não para ser patrocinado. E é a última coisa que o governo faz. Depois, tira o corpo fora e deixa na mão de gerentes de marketing (das empresas) a escolha do que vai ser patrocinado ou não. Essa seria a segunda censura econômica. Você vê, de repente, a política cultural do país sendo determinada pelos gerentes de marketing das grandes empresas. Somos contra isso. Preferimos que essa escolha seja exercida pela plateia.
Acredita que esse modelo de financiamento, baseado exclusivamente na bilheteria, funcionaria para espetáculos produzidos por companhias menos populares ou os espectadores vão à sua peça porque tem um ator muito conhecido da TV?
Essa coisa do ator conhecido a gente costuma dizer que é uma faca de dois gumes. Quando o ator é conhecido e o espetáculo é muito bom, isso se propaga rapidamente, faz o sucesso ser mais imediato. Mas, quando o ator é conhecido e o espetáculo é muito ruim, essa propagação é muito mais rápida. O espetáculo sai de cartaz muito mais rapidamente do que se tivesse um elenco desconhecido. Acho que o ator conhecido só é interessante na hora de você lançar o espetáculo. Depois, o que vai manter esse espetáculo em cartaz, o que vai fazer um sucesso ou um fracasso é a qualidade, é o que o público sente em relação àquela proposta, e não o fato de ter um ator conhecido. Se você não tiver uma boa proposta e o público não aceitar, você pode encher o seu espetáculo com todos os nomes que quiser, e ele será um fracasso mesmo assim.
Recentemente, houve um debate na imprensa entre o presidente da Funarte, Francisco Bosco, e a atriz Fernanda Torres sobre a revisão na Lei Rouanet. Segundo Bosco, a região Sudeste fica com cerca de 90% dos recursos.
Mas isso é porque não existe uma política cultural. Se o governo tivesse uma política cultural, saberia dosar isso de tal forma que todos seriam atendidos. O que vem acontecendo, o que acho que é o grande erro dessa lei de incentivo é que ela é gerida por gerentes de marketing. Então, é claro, eles querem vender. Querem nomes famosos nos produtos que estão patrocinando, querem uma visibilidade que não é cultural, é mais de marketing do que de cultura. Então, acontece essa distorção. Mas também o governo não pode eliminar aqueles que são conhecidos e só favorecer os que são desconhecidos porque a tendência, quando isso acontece, é acabar com o teatro, porque o público existe também para ver aqueles que são conhecidos. É aquela história do cobertor curto: ou você cobre os pés ou a cabeça. Acho que tem de haver uma política que consiga balancear e trazer oportunidade para os espetáculos mais experimentais sem desprestigiar e sem acabar com aqueles que trazem uma grande massa de público para o teatro.
Pessoas da área cultural dizem que as leis de incentivo, presentes também nos Estados, desacostumaram as empresas, pois elas só patrocinam por meio de renúncia fiscal e nunca por investimento direto.
Elas (as leis de incentivo) não desestimularam, elas inviabilizaram. A partir do momento em que o mercado sabe que quem está pagando aquilo é uma multinacional, os custos subiram absurdamente. Então, um espetáculo de teatro que custaria "x", agora, com as leis de incentivo, custa "mil x". Acontece que o ingresso não acompanha esse aumento de custo. Então, o que tem acontecido é que você percebe que os espetáculos patrocinados estreiam muito bem, em grandes produções, e ficam um ou dois meses em cartaz porque não têm mais condição de se manter com a bilheteria. O custo de manutenção é tão alto, e a lei de incentivo não privilegia a manutenção, privilegia a produção, que acaba saindo de cartaz. Estamos em cartaz há dois anos e reduzimos os custos porque baseamos nosso resultado na frequência do público.
Por falar nisso, como o senhor avalia o preço dos ingressos? São acessíveis à população?
Sempre falamos em valor acessível à população como se a população ganhasse a mesma coisa. Eu te pergunto: o preço de um automóvel é acessível à população? A que população estamos nos referindo? A uma classe média, uma classe média alta, uma classe alta? Qual é a população que vai ao teatro no Brasil? Qual é a população que tem educação, informação e cultura para apreciar essa arte? Estamos falando do que quando falamos do preço do produto? Se analisarmos única e exclusivamente quanto ele custa, vamos ver que o preço (dos ingressos) é irrisório. Estamos cobrando um décimo do que deveríamos perto do custo que temos de manutenção de espetáculos no Brasil. Existe uma campanha ridícula feita, às vezes, inclusive pelos meios de comunicação, de que a população não pode ter acesso ao teatro porque ele está caro. E aí vemos o MMA cobrando R$ 750 o ingresso mais barato e lotando um estádio com 20 mil pessoas. Ninguém da mídia ou em lugar algum diz que aquilo está caro. O ingresso para uma partida de futebol custa R$ 120. Não temos, hoje em dia, nenhum espetáculo de teatro cobrando R$ 120. Ninguém fala que o futebol está caro. O chiclete custa R$ 5. Ninguém fala que o chiclete está caro. Por que se fala que o teatro está caro? É quase uma campanha difamatória para acabar com uma coisa que é muito importante para o país, que é sua formação cultural.
Os ingressos para Tribos, em Porto Alegre, custam até R$ 150.
Graças a Deus. É isso mesmo. Esse é o preço, é o custo. Estamos levando uma companhia com mais de 15 pessoas para Porto Alegre. O que custa a gente chegar em Porto Alegre com esse ingresso não cobre de jeito nenhum. Agora, tem de R$ 150, mas também tem de R$ 50, não tem?
Tem ingressos a partir de R$ 40.
Aí, se você tem poder aquisitivo, você paga R$ 150. Se tem menos, você vê o espetáculo com R$ 40.
Uma pesquisa da Federação do Comércio do Rio de Janeiro revelou dados alarmantes sobre a falta de hábitos culturais dos brasileiros: 70% não leram qualquer livro no último ano, e 89% não assistiram a qualquer peça. O que precisa ser feito para que os brasileiros sejam estimulados a ir a museus, a ler livros etc.?
Talvez possamos levantar aí uma teoria conspiratória dizendo que é parte de uma organização política para que a população não tenha esse tipo de educação porque, ao ter esse tipo de educação, 90% das pessoas que estão lá nos representando não seriam eleitas. Então, acho que tudo isso se resolve se tivermos educação. Educação é propagação de cultura. Se tivermos educação, vamos mexer com muita coisa. A corrupção vai ficar mais difícil, a roubalheira vai ficar mais difícil, as pessoas vão querer ler mais livros, vão querer ir mais ao teatro, ao cinema, frequentar os museus, brigar pela formação de bibliotecas, pelo conteúdo cultural e artístico e por um país melhor. Acho que passa tudo pela educação.
As pessoas que reclamam dos políticos são as mesmas que os elegeram.
Faz um exercício. Pega uma pessoa reclamando do político e pergunta se ela já deu um dinheirinho para o guarda, pergunta se ela para em fila dupla. Pergunta quantas vezes passa no sinal vermelho. Até as coisas mais simples: se ela joga papel no chão. Você vai ver que ela faz isso normalmente. Mas isso é falta de educação.
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