
Nas quase cinco décadas em que viveu internado como paciente psiquiátrico, Arthur Bispo do Rosário (1911 - 1989) deu sentido a seu universo particular bordando mantos e estandartes entre quatro paredes. Fez esses trabalhos crente de que cumpria uma missão divina, sem nenhum interesse em mostrá-los ao circuito artístico. Nos últimos anos de vida, a obra de Bispo começou a ser descoberta e logo virou alvo de uma discussão. Seria ele louco? Um criador popular? Ou um dos pioneiros da arte contemporânea no Brasil?
O filme O Senhor do Labirinto, em cartaz em Porto Alegre, apresenta uma biografia de Bispo, que vem passando por um processo de reconhecimento artístico internacional nos últimos anos com a inclusão de suas obras nas Bienais de Veneza, Lyon, São Paulo e em diversas mostras na Europa. Sergipano que passou a infância no interior da Bahia, Bispo se mudou para o Rio de Janeiro em 1926.
Foi pugilista, marinheiro, funcionário da companhia de bondes e empregado doméstico de uma rica família até ser diagnosticado como esquizofrênico-paranoico. Isso aconteceu em dezembro de 1938, após uma série de sonhos e alucinações que o fizeram acreditar ser um enviado de Deus.
Inspirado no livro de Luciana Hidalgo premiado pelo Jabuti na categoria reportagem, O Senhor do Labirinto parte exatamente do surto que levou Bispo a ser internado, primeiramente no hospício da Praia Vermelha e depois na Colônia Juliano Moreira. O filme de Geraldo Motta Filho retrata uma figura fascinante, que fazia do misticismo e da religiosidade os motivos de sua vida e suas criações.
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Ao concentrar a narrativa no cotidiano do hospício, mostra como Bispo foi reunindo sucatas, panos e todo tipo de objetos e materiais que tinha ao redor para criar seus trabalhos artesanais. Nessa ambientação, o filme não deixa de retratar os procedimentos bárbaros praticados até bem pouco tempo em muitos manicômios, como castigos, confinamentos e eletrochoques.
O ator gaúcho Flávio Bauraqui dá vida a Bispo ao longo de quase 50 anos em uma atuação marcante que escapa ao registro folclórico da figura do artista-louco. A direção se dedica a desenvolver as relações de afeto que o personagem estabelece com seu interlocutor no hospício, o guarda Wanderley (Irandhir Santos, em atuação de destaque), e a psicóloga Rosângela (Maria Flor).
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A passagem do tempo, por vezes, causa estranhamentos, especialmente pela caracterização de envelhecimento feita com uma maquiagem forçada - em algumas cenas, Flávio Bauraqui e Irandhir Santos parecem ter próteses sobre seus rostos.
O maior problema do filme, contudo, é oferecer uma biografia convencional e até certo ponto careta sobre uma figura alucinada pelas vozes que ouvia e, por isso, merecedora de um registro mais inventivo e à altura de sua personalidade delirante. Nesse sentido, um exemplo é o documentário Hélio Oiticica, que apresenta um retrato íntimo e inventivo de Oiticica com um ensaio afetivo e sensorial que tem o próprio artista como narrador de sua história, sem entrevistados, apenas explorando áudios e imagens de época.
Ainda assim, O Senhor do Labirinto tem o mérito de biografar um criador que vem sendo melhor conhecido e compreendido por uma obra tão rica e expressiva.
ENTREVISTA
Geraldo Motta Filho, diretor de O Senhor do Labirinto
ZH - Como foi o desafio de biografar um artista de personalidade tão fascinante?
Filho - O livro foi o fio condutor para escrevermos o roteiro. O fato de livro, apesar de não ser uma ficção, ter em certa medida uma narrativa ficcional (ou seja, ele foi escrito no formato "romance" e não como uma grande "matéria") nos ajudou muito. Nos permitiu, por exemplo, que extraíssemos vários diálogos já prontos e também certa cronologia. Esse e tantos outros aspectos que nortearam a construção do roteiro fizeram com que ficasse guardada uma relação de certa fidelidade, por assim dizer, entre o filme e o livro. Tanto o livro quanto o filme, por exemplo, começam com o delírio do Bispo na casa da família Leone e depois com sua peregrinação pelo Centro do Rio, até a Candelária. E, ao contar a história do Bispo, conta-se também um pouco a história da psiquiatria no Brasil, com o aparecimento do eletrochoque, da lobotomia etc. A pesquisa do livro sobre esses temas aparece em imagens no filme, contextualizando a trajetória do personagem. Inúmeras cenas do Bispo em sua cela estão no livro: as goteiras que molhavam suas obras, as relações com os pacientes, com os funcionários, com o psicanalista e fotógrafo Hugo Denizart, com a psicóloga Rosangela Maria, como ele se tornou xerife do pavilhão, como ele se impôs para manter a obra, a descrição do dia a dia no hospício, da fila no refeitório, da repressão... Todo esse ambiente externo e interno é descrito no livro em detalhes e fielmente transposto para o filme. Por fim, vale dizer que o fio condutor da dramaturgia em nosso roteiro é o personagem Wanderley (brilhantemente interpretado pelo Irandhir Santos), que nós criamos para conduzir o espectador, por meio de um artifício poético, ao universo do Bispo. Em síntese, o filme traz elementos reais e ficcionais bem misturados e dosados.
ZH - É marcante a atuação de Flávio Bauraqui. Como se deu a preparação de atores?
Filho - Tivemos o prazer de trabalhar com excelentes atores. Contamos, além dos dois citados acima, com atores do porte de Odilon Esteves, Diane Velloso, Andrea Villela, Eriberto Leão e outros tantos. Mas, de fato, o trabalho de preparação do Flávio e do Irandhir foi um caso à parte. O Flavio, por exemplo, se prevalecendo de toda a sua sensibilidade, tomou a decisão de usar a voz do Bispo como fio condutor da construção do seu personagem. Como ele nos diz: "Como eu não escutava os anjos, decidi escutar a voz do Bispo para que ela me conduzisse ao seu universo". Que escolha corajosa e, ao mesmo tempo, genial. Que prazer trabalhar com um ator como esse. Enfim, no caso do Flávio, tudo que diz respeito ao personagem foi tecido a partir "das vozes que ele escutava", assim como ocorria com o Bispo. Essa foi a grande descoberta do Flávio. O Bispo é o Bispo em virtude das vozes que ele escutava. Foi em virtude desta escuta que ele se configurou enquanto tal. E, por isso, essa seria a via e o seu percurso para construir o seu personagem.
ZH - E no caso de Irandhir Santos? Ele também tem uma atuação de destaque.
Filho - Quanto ao Irandhir, sua escolha foi um objeto: as chaves das celas do pavilhão Ulysses Vianna, onde se encontrava Bispo do Rosário. Mais uma vez uma escolha genial, posto que é por meio destas chaves que o seu personagem não somente tem acesso a Bispo do Rosário, mas, como também, promove o descortinamento do universo do Bispo para os espectadores. A meu ver, o poder simbólico deste objeto contribuiu para que o Irandhir pudesse não apenas construir o seu personagem, mas, sobretudo, estabelecer um elo com o Bispo e com os espectadores. E não por outra razão senão porque esse objeto vai ganhando nova configuração simbólica. Da posse da chave - no início do filme -, passando pela entrega da mesma para Bispo, até o momento do abandono deste objeto, o personagem não apenas se aproxima mais e mais de Bispo e do seu universo, mas conduz, de maneira poética, o espectador ao encontro de Arthur Bispo do Rosário. Enfim, tanto no caso do Flávio quanto do Irandhir o processo de criação e a construção dos personagens foram feitos a partir de uma escolha destes atores: "as vozes" e as chaves.
O SENHOR DO LABIRINTO
De Geraldo Motta Filho Drama, Brasil, 80min, 12 anos.
Em cartaz no CineBancários (às 17h e às 19h, exceto nas segundas-feiras).
Cotação: Bom