Poderia ser um conto de fadas: um rei troca as virtudes de seu espírito por dobrões de ouro e, por isso, acaba se transformando em um horrendo bruxo perante os olhos dos súditos que tanto o admiravam. Contudo, tem contornos bem menos fabulísticos a participação do cantor Roberto Carlos na nova campanha publicitária da Friboi, marca da empresa JBS, líder mundial em processamento de carne bovina. Mesmo assim, o acontecimento verídico nos traz uma "moral da história".
No comercial que insuflou a polêmica, o Rei aparece em um restaurante trocando um prato de macarrão com legumes por um bife, ao som do famoso refrão da música O Portão, aquele que diz "eu voltei, agora para ficar", sublinhando o fato de que Roberto estaria voltando a comer carne após mais de 30 anos de suposto vegetarianismo. Era previsível que vegetarianos e defensores dos animais bombardeassem com críticas o novo garoto-propaganda. Ainda antes de o reclame ser exibido na televisão aberta, comentários negativos inundaram as redes sociais e também sites e blogs dedicados ao vegetarianismo. Falou-se em retrocesso ético do artista; acusaram-no de ter vendido seus princípios e de agir com hipocrisia ao incentivar a matança de bois enquanto ele próprio se posicionava a favor dos animais. Para reforçar essa última tese, vegetarianos e afins desencavaram canções lado B do Rei (como As Baleias), nas quais resplandeceria a mensagem de defesa animal, e garimparam trechos de entrevistas em que ele expressou sua afeição por formigas, lagartixas e sapos. Nada previsível, porém, foi a reação do grande público, que veio após a estreia oficial do anúncio na TV: mesmo os mais contumazes churrasqueiros uniram suas vozes ao coro vegetariano para repreender as incoerências de Roberto Carlos.
Uma primeira lição que se pode daí depreender é que a admiração por alguém fiel aos seus ideais (sejam eles quais forem) costuma ser tão grande que se torna difícil perdoar quem fraqueje ou mude de ideia em definitivo. Em uma sociedade cada vez mais fluida, com fronteiras pouco definidas entre as ideologias, ter convicções inabaláveis é, muitas vezes, tomado como sinônimo de caráter e confiabilidade. Rever conceitos e adotar novas posturas acaba rendendo ao sujeito a pecha de "vira-casaca". Por esse motivo, foi quase unânime a decepção com o cantor: vegetarianos e comedores de carne deram-se as mãos para gritar que o Rei estava nu. Eis que chegamos à segunda lição: a verdade é sempre vacina contra os desapontamentos.
A definição forte de vegetarianismo é a de uma alimentação exclusivamente vegetal, com abstenção de todos os ingredientes de origem animal, mesmo aqueles que não resultaram diretamente em morte. Isso exclui todos os tipos de carnes e também ovos, laticínios e derivados. A definição fraca de vegetarianismo interpreta-o como a dieta livre de todos os tipos de carne, aves e peixes, podendo incluir laticínios ou ovos (muitas vezes, essa situação é também chamada de protovegetarianismo). Mas não importa qual definição adotemos: o fato é que a alimentação de Roberto Carlos jamais se encaixou em nenhuma delas. Há cerca de três décadas, ele tirou a carne vermelha do cardápio, mas seguiu com as carnes brancas. A partir de certo momento, passou a comer só peixe e frutos do mar. Sob o prisma de uma ética utilitarista, pode-se considerar que se alimentar apenas de peixes é pior do que se alimentar apenas de carne bovina, por exemplo, pois, no primeiro caso, o número de animais mortos para saciar os apetites de uma só pessoa seria maior.
Em suma, o Rei nunca passou perto do vegetarianismo e sequer adotou uma postura alimentar que buscasse minimizar o sacrifício de bichos. Ademais, já em 2005, ele dava sinais de simpatia pela criação e pelo abate de bovinos ao adquirir um touro reprodutor por quase oitocentos mil reais, a fim de começar uma criação de gado. Frente aos fatos, torna-se difícil compreender a surpresa e a indignação que agora retumbam: ao se tornar estrela da Friboi, não houve retrocesso ético por parte do cantor, porque jamais houve um avanço; não se pode tampouco falar em especial caso de hipocrisia, pois Roberto é (e sempre foi) como a maioria de nós _ defende alguns animais (por gosto pessoal ou conveniência) enquanto dispõe da vida e dos corpos de outros tantos (pelos mesmos motivos).
Já se afirmou que "o que Pedro pensa de Paulo diz mais sobre Pedro do que sobre Paulo". As opiniões que os súditos agora manifestam a respeito do seu Rei dizem muito mais sobre eles do que sobre o Rei. A revolta dos fãs, vegetarianos ou não, é corolário de um processo de idealização, que tem a fantasia por combustível. O público vestiu Roberto Carlos com um manto de virtude e ascetismo ao qual ele nunca quis fazer jus; imaginaram-no empunhando bandeiras com que ele não se identificou; agora, pagam com decepção o preço desta necessidade tão humana de fabricar mitos. Se apenas agora enxergam que o Rei está nu, é porque, na verdade, há tempo já estavam cegos.