Parte da história da música pop gaúcha será contada neste final de semana, no Araújo Vianna. Sábado e domingo, Nei Lisboa, Kleiton & Kledir, Nenhum de Nós e Papas da Língua sobem ao palco para apresentar, na íntegra, seus trabalhos mais representativos na terceira edição do projeto Discografia Pop Rock Gaúcho.
A iniciativa, que em anos anteriores resgatou álbuns clássicos de bandas como DeFalla, Cachorro Grande e Tequila Baby, aposta agora em menos barulho e mais lirismo.
- Esta edição está menos roqueira, mas o objetivo segue o mesmo: mostrar ao público canções que ele provavelmente nunca ouviu ao vivo - explica o curador Leandro Bortholacci.
Além de diminuir a rotação - mas não a emoção -, a curadoria privilegiou discos com no mínimo cinco anos de vida e que valorizassem momentos cruciais das carreiras dos artistas. Para Kledir Ramil, que vai apresentar hoje, com seu irmão, o disco Kleiton & Kledir, de 1981, o projeto não poderia ter acertado mais.
- Esse disco sedimentou a nossa carreira e mostrou definitivamente para todo país a nova música gaúcha, com um sotaque diferente, uma maneira própria de tocar e cantar.
Nei Lisboa também se apresenta no sábado. Domingo será a vez de Papas e Nenhum de Nós.
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:: Nei em tom político, por Carlos André Moreira
Cena Beatnik foi o disco com que Nei Lisboa entrou no século 21, retomando o contato com sua música, após quase uma década dedicado a projetos editoriais e literários. Chegou a lançar, em 1998, Hi-Fi, um disco de sucesso apresentando versões acústicas para canções do rock e do folk internacionais, mas o último de inéditas havia sido Amém (1993). Em 2000, Nei foi retomando as composições, e fez do palco o laboratório, apresentando ao vivo as 12 canções à medida que eram compostas.
No conjunto, Cena Beatnik é um disco que redireciona a carreira de Nei. Parte do humor nonsense de Carecas da Jamaica ainda está lá, mas transformado em sátira política, como nos versos "Mas quem espera sempre alcança / e um belo dia / assiste requentar a guerra fria / entre o cartel do crack e a Nasdaq"(Zarpar pro Futuro) ou "Contrata para produção urgente / um negro bem dotado / e um latino quase inteligente" (Produção Urgente).
Essa veia política também se apresenta em reavaliações delicadas e melancólicas das experiências de sua geração (Por Aí) ou as memórias do irmão Luiz Eurico, desaparecido durante a ditadura militar (E a Revolução). E a faixa-título, primeira do álbum, comprova que Nei nunca perdeu sua sensibilidade para o pop certeiro.
Cena beatnik (2001)
"Cena Beatnik foi inspirado pelos movimentos de Seattle e pelo Fórum Social Mundial. Saúda alegremente esse retorno das esquerdas e dos movimentos sociais ao cenário político, avesso a um sistema onde 'o mundo é dos bancos, e os bancos, dos mendigos'. Algumas canções passam a limpo agruras e doces devaneios da geração revolucionária dos anos 1960 e 70, mas a percepção de um futuro e de caminhos institucionais muito favoráveis é visível. " (Nei Lisboa)
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:: A conquista do Brasil, por Marcelo Perrone
É a prova de fogo universal para todo artista que lança um primeiro disco de sucesso: consolidar no segundo álbum a boa impressão. Já conhecidos no Brasil por conta do LP de estreia, Kleiton & Kledir, promovido por faixas como Maria Fumaça, Fonte da Saudade e Vira Virou (que emplacou na trilha da novela da Globo Baila Comigo), os manos de Pelotas mostraram no disco seguinte que sobravam talento e fôlego para jogar no time principal da MPB.
O novo álbum abria com Deu pra Ti, hit que popularizou nas rádios do país expressões regionais, como "bah" e "tri legal". Porto Alegre era homenageada como a cidade-antídoto para o baixo astral, lugar de cenários (Bom Fim, Bar João e Beira-Rio) e amigos queridos (Fogaça e Falcão). Fogaça, alias, é parceiro em Lagoa dos Patos e autor da letra de Semeadura, música do irmão caçula de Kleiton e Kledir, Vitor Ramil. Gravaram ainda outra música de Vitor, Estrela, Estrela. Em Noite de São João, o parceiro foi Pery Souza, ex-companheiro de Kleiton e Kledir nos Almôndegas. Navega Coração e Paixão ("Amo tua voz e tua cor / E teu jeito de fazer amor"), outro hit nacional, pavimentaram o caminho de Kleiton e Kledir por entre turnês com shows lotados e palcos dos mais populares programas de TV da época.
Kleiton & Kledir (1981)
"Este disco sedimentou a carreira de K&K e mostrou para todo o país a nova música gaúcha. Deu pra Ti marcou nossa vida de forma emblemática e acabou nos transformando em símbolos do gaúcho contemporâneo. O disco traz a maturidade dos conceitos de pop rock gaudério que vínhamos desenvolvendo desde o Almôndegas." (Kledir Ramil)
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:: Um disco para lembrar, por Roger Lerina
Sexto trabalho de estúdio do Nenhum de Nós, Paz e Amor (1998) sintetiza com perfeição as características, influências e qualidades responsáveis pelo sucesso da banda há quase 30 anos. Estão lá as canções pop com refrões que fisgam que nem anzol, como a música-título e Da Janela ("Você ainda me ama? / Eu sei que no fundo / Bem no fundinho / Você ainda me ama").
Há espaço para lembrar novamente grandes compositores brasileiros (como nas regravações das belas Meu Mundo e Nada Mais, de Guilherme Arantes, e Telhados de Paris, de Nei Lisboa) e reverenciar o rock latino-americano de primeira linha _ representado por uma versão em português de Rezo por Vos, de Charly García e Luis Alberto Spinetta.
O Nenhum, aliás, é pioneiro na divulgação no Brasil do que de melhor é produzido no pop Hermano - inclusive incorporando sonoridades vizinhas, como no abolerado rock Eu Sei, que ecoa bandas argentinas tipo Soda Stereo e Babasónicos. Já a produção de Sacha Amback equilibra o tom acústico de cordas, piano e acordeom - marca registrada do Nenhum - com levadas eletrônicas dançantes.
Paz e Amor resistiu à passagem do tempo, honrando o título do hit que abre o álbum: Você Vai Lembrar de Mim.
Paz e Amor (1998)
"Paz e Amor funcionou como uma carta de intenções. Consolidou nossa ideia de sonoridade característica da banda. Foi mixado nos estúdios Rockfield, no País de Gales, pelo produtor Dave Charles. Além disso, o repertório reúne grandes sucessos, como Paz e Amor, Da Janela e um dos maiores, Você Vai Lembrar de Mim." (Thedy Corrêa)
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:: A explosão do Papas, por Alexandre Lucchese (especial)
No final dos anos 1990, bandas como Cidade Negra, O Rappa e Skank ganhavam espaço nas rádios com uma mistura de reggae, rock e batidas eletrônicas. Com o lançamento de Xa-la-lá, o Papas da Língua se tornou o primeiro representante gaúcho nesse cenário.
- Na época, tinha os remanescentes do rock, mas não havia bandas pop assim por aqui. Era engraçado, no início, pensavam que a gente era carioca, perguntavam "E aí, o que estão achando do frio?" - lembra Zé Natálio, baixista da banda.
Além das influências já citadas, a MPB também entrava no caldeirão pop do grupo, como exemplifica o músico:
- Quando fizemos Blusinha Branca, pensamos: "Nossa, essa é uma música para o Martinho da Vila gravar"!
Além desse sucesso, o segundo disco da banda era repleto de hits, como Garotas do Brasil, Mary Jane, Viajar e Noite de Reggae. As canções entraram na programação das rádios, e o disco vendeu 30 mil cópias em apenas um ano. A banda chegou a fazer 18 apresentações por mês.
Dezesseis anos depois do lançamento, o disco segue cativando fãs.
- Até hoje, onde quer que a gente toque, vem alguém com um exemplar do Xa-la-lá pedir um autógrafo - diz Zé Natálio.
Xa-la-lá (1998)
"Escolhemos o Xa-La-Lá porque foi um disco decisivo na carreira do Papas, no qual produzimos a sonoridade de música pop que tanto queríamos, utilizando recursos tecnológicos e condições ideais de produção com músicas que fizeram muito sucesso junto ao publico e à mídia." (Fernando Pezão)