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"(...) não só os que sofrem injustiças mas também os que as fazem estão condenados a não ter alegrias na vida." - Medeia, em Medeia Vozes
Vencedor em oito categorias do prêmio Açorianos de teatro 2013 e também o eleito do júri popular, o espetáculo Medeia Vozes, da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, sobre o romance da alemã Christa Wolff (1951 - 2011), volta a Porto Alegre em curta temporada, de quinta a domingo. Imperdível: é obra-prima.
O mito de Medeia, dramatizado por Eurípides (480 - 406 a.C.) é reinterpretado, e Medeia, absolvida dos crimes de fratricídio e filhicídio. Medeia Vozes examina sua imputação como assassina e revela as tramas e ideologias encobertas por esta condenação. O espetáculo é um grande rito dramatúrgico, com imagens e performances de muita inteligência e beleza.
A Medeia de Eurípides trata da passionalidade vingativa de uma mulher feiticeira, trazida da Cólquida, um reino na margem oriental do Mar Negro, para viver em Corinto, sofisticada cidade grega. O contraste entre barbárie e pólis clássica revela o exotismo desta mulher maga, que esquartejou o irmão para despistar as tropas paternas quando fugia com Jasão e o velo de ouro, e capaz de liquidar com o rei e a princesa da cidade e com os próprios filhos para dar uma lição ao seu (ex)consorte. Ao final, vingada, diante do desespero de Jasão, Medeia parte no carro do Sol, o deus ex machina que dá fim espetacular à tragédia. Obra-prima, chocou o público e recebeu apenas o terceiro lugar no concurso trágico de 431 a.C., em Atenas.
Matar os filhos para provocar o ciúme no consorte após o abandono, loucura que se repete muitas vezes. Em 1975, Chico Buarque e Paulo Pontes atualizaram Medeia em uma favela carioca, na peça A Gota d'Água, que dava voz poética ao povo, em contestação ao autoritarismo ditatorial. Seis anos antes, Pier Paolo Pasolini (1922 - 1975) filmou com Maria Callas (1923 -1977) a sua versão de Medeia. Na era do Satyricon de Federico Fellini (1920 -1993), a Medeia de Pasolini era voz do neopaganismo da contracultura, com o resgate de saberes antigos e de imagens de mulheres poderosas. Tal como Édipo e Antígona, Medeia serve para interpretar dilemas da condição humana e das sociedades, por meio de imitações e metáforas de grande poder simbólico e dramático.
Medeia Vozes ultrapassa Eurípides e vai ao mito antigo buscar nomes e tramas que esclareçam a culpa de Medeia, para acobertar delitos antigos na Cólquida e em Corinto. A maga criminosa passa a representar a mulher criminalizada ao longo dos séculos, a sábia acusada de bruxaria. O resgate de Medeia denuncia a natureza do poder viril, suas manipulações, hipocrisias e os ultrajes impostos à mulher. Publicado em 1996, o romance olha para Cassandra (1983), outra obra com que Christa Wolf emancipa mulheres antigas e modernas, apresentada como Kassandra In Process pelo Ói Nóis em 2002.
O espetáculo é resultado de mais de quatro anos de pesquisa e produção, que se revelam em uma montagem de notável força e beleza. O público é conduzido por diversos ambientes, participando das cenas e vendo o desenrolar da trama com a visão dos personagens em seu corpo e seu ambiente. Música, cenografia, efeitos visuais e performances virtuosísticas dão ao espetáculo a dimensão de grande arte, mais uma obra-prima deste grupo de vigor dionisíaco com rigor apolíneo, o Ói Nóis Aqui Traveiz. Ao final, as mais de três horas de teatro terão passado como se os milênios entre nós e os gregos fossem apenas minutos compreendidos em um piscar de olhos, e a mente sai do rito iluminada por imagens e ideias inesquecíveis.
* Historiador e arqueólogo, professor da UFRGS
Medeia Vozes
Versão do mito de Medeia, adaptada do romance de Christa Wolf.
Concepção, direção e elenco da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz.
De quinta a domingo, às 19h30min. Duração: 3h.
Terreira da Tribo (Rua Santos Dumont, 1.186), fone (51) 3028-1358.
Entrada franca. Lotação limitada por sessão, com distribuição de senhas a partir das 19h.
A peça: espetáculo reconstituiu o mito grego de Medeia rejeitando sua versão mais conhecida, que costuma retratar a protagonista como uma mãe cruel e infanticida. Medeia é exposta como uma mulher que necessita se afirmar como tal em um ambiente dominado pelos homens.