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Guardião de parte importante da história da Capital e do Estado, o Museu de Porto Alegre Joaquim José Felizardo ainda trabalha para recuperar os danos causados pela enchente de maio.
A instituição municipal, que ocupa um casarão centenário na Rua João Alfredo, no bairro Cidade Baixa, teve seu andar térreo tomado inteiramente pela água.
A inundação chegou a quase 1m de altura. Cerca de 72 mil peças do acervo arqueológico salvaguardado pelo museu foram atingidas pela enchente — o que representa 24% deste acervo, formado por aproximadamente 300 mil itens.
O material é composto por fragmentos arqueológicos que remontam aos primeiros habitantes do Estado, indígenas de diferentes etnias que ocuparam o território do Rio Grande do Sul antes da chegada dos europeus.
As peças estavam acondicionadas em caixas de polietileno distribuídas em cerca de 50 estantes compostas por seis prateleiras cada. O que estava sobre as duas primeiras prateleiras foi tocado pela água lamacenta da enchente.
Já o acervo histórico da instituição, que também fica armazenado em andar térreo, mas em outra edificação do espaço, felizmente não foi atingido pela inundação.
A reserva inclui cerca de 12 mil fotografias e mais de 1,5 mil itens que ajudam a contar a história de Porto Alegre, como objetos, peças de roupa, documentos e outros registros.
Este acervo foi erguido e realocado pela equipe do Joaquim Felizardo antes da chegada da água à Cidade Baixa, conforme conta a diretora da instituição, a jornalista Beth Corbetta:
— Não acreditávamos que a água fosse entrar porque, na enchente de 1941, a inundação não chegou ao museu. Mesmo assim, quando a coisa começou a ficar feia em Porto Alegre, erguemos tudo o que era possível no tempo que tivemos. Se não tivéssemos feito isso, os danos seriam bem maiores.
Perdas devem ser "mínimas"
A principal missão do museu, agora, tem sido limpar e recuperar as peças do acervo arqueológico que foram afetadas. A ideia inicial era deslocar os itens a serem tratados até laboratórios de universidades parceiras — UFRGS e PUCRS ofereceram espaços —, mas a alternativa acabou se mostrando inviável, devido à fragilidade do material. A solução, então, foi construir um laboratório no próprio museu.
A estrutura foi montada no espaço onde antes funcionava o auditório da instituição e em um anexo erguido especialmente para a instalação do laboratório.
O trabalho está sendo coordenado por duas especialistas em recuperação contratadas pela prefeitura e envolve também a equipe do museu e alunos da UFRGS participantes do projeto de extensão Museologia em Ação Pós-tragédia Climática: Tratamento de Acervo Arqueológico, coordenado pelos professores Jeniffer Cuty, Matheus Pereira e Olivia Nery.
Museóloga do Museu Joaquim Felizardo, Luciana Brito diz que as perdas devem ser "mínimas". Contudo, a recuperação dos itens tende a ser demorada, devido à grande variedade de materiais que compõem o acervo.
— Há vestígios ósseos, peças de cerâmicas, peças de couro, metais, rochas. Cada um desses materiais precisa ser tratado de uma forma diferente, com produtos e técnicas diferentes, o que torna o processo mais delicado e minucioso — diz.
Desafio para o museu
A expectativa é de que todo o trabalho esteja concluído até o final do ano. Enquanto isso, as peças que foram afetadas e ainda não passaram pelo tratamento permanecem acondicionadas em água. Luciana explica que, como os itens passaram muitos dias submersos, acabaram se estabilizando no meio aquoso.
— No momento em que se tira a água, o material precisaria ser limpo imediatamente, ou acabaria encrustando lama, mofando e dificultando a recuperação. Por isso, mantemos os itens submersos em água até o momento da limpeza de cada um. Evidentemente, não é a água da enchente. É água destilada, que precisa ser trocada de tempo em tempo — detalha a museóloga.
Encontrar a grande quantidade de água destilada que é necessária ao procedimento vem sendo um desafio para o museu. O elemento tem sido obtido junto a instituições que possuem destiladores, como a Faculdade de Farmácia da UFRGS.
— Diante da crise, todo mundo aprendeu a se ajudar. Tem sido fundamental o apoio da Secretaria Municipal da Cultura, das outras secretarias do município e das universidades — ressalta Beth, a diretora do museu.
Espaço limitado
As peças do acervo arqueológico que não foram atingidas pela água da enchente — cerca de 228 mil — precisaram, ainda assim, ser retiradas do andar térreo e realocadas para o piso superior, em cumprimento de uma determinação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Com isso, duas salas expositivas do museu estão ocupadas por estantes, servindo de reserva técnica para o acervo.
O hall de entrada está aberto a visitação, com exposição sobre a linha do tempo de Porto Alegre. O pátio do museu, que se destaca pela ampla área verde, também pode ser frequentado pelo público, de segunda a sexta, das 9h às 17h.
Nova edificação será construída
A situação cria um impasse para o museu, que precisa liberar as salas que hoje estão sendo ocupadas pelo acervo para voltar a funcionar plenamente, mas não pode retornar com os itens para o andar térreo.
Assim, uma nova edificação será construída no terreno do museu, com a finalidade de abrigar o acervo arqueológico. O espaço será erguido com placas cimentícias, o que deve agilizar o processo de construção, e terá o piso elevado, para garantir a segurança em caso de novas inundações.
Conforme a diretora Beth Corbetta, o projeto está sendo viabilizado pelo Escritório de Reconstrução e Adaptação Climática da prefeitura. A expectativa é de que todas as etapas, da finalização da obra ao transporte do acervo para o novo prédio, estejam concluídas até o meio do ano, quando o museu poderá voltar a utilizar todas as salas para fins de exposição.
Plano Emergencial
Outra novidade é que, desde meados de janeiro, o Museu Joaquim Felizardo conta com um Plano Emergencial. O documento foi desenvolvido por alunos da disciplina de Tópicos Especiais em Preservação do curso de Museologia da UFRGS, ministrada pela professora Jeniffer Cutty.
A docente explica que a metodologia empregada segue o padrão internacional do Instituto Canadense de Conservação, referência em gerenciamento de riscos a patrimônios culturais. O plano mapeia todos os riscos aos quais o Museu Joaquim Felizardo pode estar submetido, considerando incidentes de menor a maior grau, como incêndios e enchentes.
A partir disso, o plano traça as ações necessárias para minimizar os riscos e orienta sobre como agir em caso de emergência, visando à preservação do patrimônio. O material ainda traz direcionamentos sobre para onde levar os acervos em caso de emergência e um cadastro de voluntários de diferentes áreas que podem ser acionados.
— O trabalho foi feito com o olhar voltado à realidade do museu, o que é fundamental para que o plano seja exequível. Os alunos levaram em consideração as potencialidades e limitações da equipe, os recursos disponíveis, as plantas e a localização do edifício, enfim, todos os fatores que influenciam as ações a serem tomadas — comenta a professora Jeniffer.
Cultura de planejamento
O documento foi recebido com entusiasmo pela direção do museu, que considera o material "um norte importante". Já para os alunos da UFRGS, a elaboração do plano oportunizou colocar em prática os conteúdos aprendidos em sala de aula.
Conforme Jennifer, o plano é uma forma de difundir a importância do gerenciamento de riscos, ainda pouco praticado pelas instituições museológicas brasileiras:
— O Brasil tem uma cultura muito forte de mobilização. Ou seja, quando os problemas acontecem, conseguimos nos mobilizar e nos apoiar rapidamente, mas falta uma cultura de planejamento. Os planos emergenciais não são obrigatórios no país, mas são algo que todas as instituições deveriam ter.