Aos 55 anos, Luís Augusto Fischer é o homenageado por uma feira da qual participa ativamente há décadas, como frequentador e como colaborador ativo: em sessão de autógrafos, mesas redondas, mediação de debates. Professor universitário além de escritor, Fischer é, há anos, um intelectual público, intervindo ativamente no debate cultural do Estado por meio de entrevistas e colunas em jornal - como a Pesqueiro, que assina neste mesmo caderno Cultura.
Nesta entrevista, concedida em sua casa em Porto Alegre, o novo patrono fala de sua relação com a Feira, suas primeiras impressões do evento, o modo como testemunhou a transformação de uma festa com ar de quermesse em uma programação extensa que se espraia tendo a Praça da Alfândega como eixo. Lamenta algumas das mudanças das últimas décadas, como a falta de uma lista de mais comprados ou o fim do desconto geral de 20% em todos os livros.
Fala também de sua condição de autor sucesso na Feira, em 1999 e 2000, com o Dicionário de Porto- Alegrês. E confessa que a cerimônia de abertura a que deve comparecer no dia 1 º de Novembro será uma exceção em sua história com o evento - embora presente ao longo da programação, Fischer raramente esteve na solenidade. A 59ª Feira do Livro vai de 1 º a 17 de novembro.
ZH - Qual sua lembrança mais antiga com a Feira?
Luís Augusto Fischer - A lembrança mais remota é de quando eu tinha uns 12, 13 anos, por aí, 1970 ou 1971, e fui na Feira pela primeira vez para comprar um livro específico, que se chamava Eram os Deuses Astronautas, de Erich von Däniken. E ao mesmo tempo é uma lembrança muito afetuosa, porque eu não me lembro se li algo sobre esse livro no jornal ou se alguém falou no colégio, algo assim. Esse livro esteve um pouco na moda naquela época. Essa lembrança é, ao mesmo tempo, algo bom de retomar sempre, porque é um antídoto contra o preconceito, porque eu fui um adolescente que queria ler Eram os Deuses Astronautas, que era um best- seller, uma trivialidade, um livro que hoje eu pessoalmente não recomendaria para ninguém explicitamente, mas que me fez ser leitor e vivenciar a Feira. Acho que qualquer um deve ir para a Feira para fazer o que quiser, não para ler os livros que o cânone manda ler.
ZH - E o senhor se lembra da impressão dessa primeira visita?
Fischer - Não sei se é uma lembrança ou se é dessas reconstruções posteriores. Na verdade eu me lembro mais era do Centro. Dizendo de modo um tanto dramático, me lembro da conquista do Centro por um menino de bairro, que era o meu caso. Eu me criei no Quarto Distrito, primeiro no bairro São Geraldo e depois no São João. Ia ao Centro para o médico, para acompanhar minha mãe, mas o Centro era mesmo o centro naquela época, então ir para lá tinha uma mística. Eu tinha uma vivência próxima do Centro na antiga Sogipa, que ficava na Alberto Bins, na última quadra do que é hoje o Viaduto da Conceição. Eu joguei basquete ali, fui escoteiro, então depois dos meus 11 anos eu pegava bonde, depois ônibus, e ia para a Sogipa. Mas a Feira era uma outra coisa um pouco maior, até porque era na Praça da Alfândega, a gente tinha de ir até o fim da linha do ônibus, depois ir a pé um pedaço. Então eu acho que essa conquista é mais significativa do que propriamente a geografia da Feira. Porque aí eu já tenho uma imagem muito esfumada da coisa. Me recordo vagamente das barracas em volta daquela alameda central onde tem a estátua do General Osório, mas aí já não me lembro exatamente se era nessa feira dos meus 12 anos ou se em alguma dos meus 20 anos.
ZH - Por assim dizer, o senhor testemunhou a própria evolução da Feira.
Fischer - Sim, claro. Eu me lembro claramente das últimas feiras antes da revolução feita na gestão de Júlio Zanotta na Câmara Rio- Grandense do Livro. Porque até ali era uma confusão. O simples fato de que tinha de correr fio para estender energia elétrica para as barracas, aquilo corria em uns postes, era uma grosseria, uma coisa horrorosa. Quando eu trabalhei na Coordenação do Livro e Literatura da Prefeitura Municipal, de 1993 a 1996, naquele período o município investiu muito em fazer uma rede escondida de energia, que ia por dentro dos canteiros. Uma coisa óbvia hoje, mas até os anos 1990 era um horror. Naquelas alamedas que eram mais estreitas do que são hoje tinha uma barraca diante da outra e no meio tinha um poste para segurar a fiação em que corria a iluminação. Era uma quermesse, uma feira muito mais acanhada. Um pouco tinha um aspecto legal porque tu conhecia todo mundo.
ZH - Na última década tornou- se um comentário recorrente que a Feira perdeu esse ar paroquial de espaço de encontro da intelectualidade local. Qual sua opinião?
Fischer - Primeiro que não era bem a intelectualidade. Eram jornalistas, professores, mas os escritores mesmo não eram muito habitués da Feira. A geração do Erico, por exemplo, Cyro Martins, Dyonélio Machado, eles não frequentavam a Feira. O Mario Quintana ia porque ele nos últimos anos era um velhinho folclórico, e havia trabalhado ali no Correio do Povo, morava no Centro... Gente de universidade não ia muito. Estava esses dias comentando com o Flávio Loureiro Chaves que quando o Guilhermino César foi patrono, em 1990, no que talvez tenha sido a única cerimônia de abertura da Feira à qual fui na vida, ele foi só naquele dia e não foi mais. Quero dizer que essa ideia de que a intelectualidade exigente se reunia lá não é muito assim, não, foi também sendo conquistada pela Feira ao longo do tempo.
ZH - Ainda no âmbito dessas discussões, diz- se que a expansão gradativa do evento vai, inevitavelmente, levá- la algum dia para fora da Praça, para algum lugar maior. O senhor também acha isso?
Fischer - Não, eu sou ideologicamente contra, e sempre vou lutar contra essa mudança. Justamente o que a nossa feira tem de legal é que ela acontece na praça pública, sem cobrar ingresso. A nossa Feira do Livro é que nem a Feira do Peixe, a Feira do Pêssego. O produtor abre uma barraquinha, bota lá para vender, com uma aba aberta para o público, que pode abrir, folhear, essa é a graça da coisa.
ZH - O senhor já havia escrito em ZH que o sistema de escolha do patrono por meio de uma eleição talvez não fosse a melhor alternativa, e chegava até a deixar aberta a possibilidade de não participar mais do processo. Por que mudou de ideia este ano?
Fischer - Não sei bem. Um pouco porque esse convite para ser patronável é envaidecedor. A Feira é um ponto alto da história cultural do Rio Grande do Sul que se repete todo ano. Então é uma honra o teu nome ser lembrado. E por outro lado, agora que eu sou pai, e pai velho, tenho isso de pensar nas crianças. E me passou pela cabeça que as crianças podem ver nisso uma referência boa, sei lá. Mas realmente, já tive momentos em que não quis participar. E quanto ao método em si... No começo fui um entusiasta dele, no sentido de que foi e talvez ainda continue sendo mais um elemento de divulgação da Feira. Nesse sentido, eu sou 100% a favor. Mas algumas vezes em que eu fui patronável me incomodou uma coisa: quando eu não era escolhido, eu estava andando na rua e era abordado por alguém que me dizia:" Olha, não te incomoda, outro ano vai ser tu". E eu achava isso uma coisa meio estranha, como se fosse por decurso de prazo, algo assim. Outra coisa que eu também escrevi é que realmente não gosto disso de disputa: um ganha e outros perdem. Eu sei que acontece, que minha visão é meio pateta e meio ingênua. Mesmo no dia em que meu nome foi anunciado, eu fiquei um pouco constrangido de ser eu: todo mundo olhando para mim, câmera apontando, repórter chegando, e os outros ali do lado, com o mesmo valor que eu. Fiquei um pouco cabreiro com isso. Por outro lado, tem coisas como o Faraco, que é um cara que se recusa a participar do processo, desde o início, com todo o direito e com boas razões. E o Faraco é um escritor maravilhoso, representativo. Então não sei se não era o momento de suspender por um ano essa coisa de patronável e escolher o Faraco, sem concorrer com ninguém. Eu realmente não sei o que se deve fazer a respeito disso, mas o sistema me dá, sim, um pouco de constrangimento.
ZH - Charles Kiefer já comentou que a condição de patrono amplia a visibilidade de um escritor para quem não acompanha literatura. Como o senhor vê essa condição?
Fischer - De fato, isso acontece. Esses dias a minha mulher veio me pegar de carro na esquina de casa e eu fiquei ali na beira da avenida por uns minutos. E tocou o telefone, eu atendi e fiquei com aquele ar de quem está meio no telefone, meio na rua, e nesse tempo eu peguei duas ou três sinaleiras fechadas na esquina. E nas vezes em que ela fechou, quem parava do meu lado me abanava, me fazia sinal de positivo, gente que eu nunca tinha visto na vida. Por outro lado, eu já havia tido uma experiência muito parecida com essa quando lancei o Dicionário de Porto- Alegrês. Porque em 1999, 2000, ele foi muito vendido, foi o mais vendido em um desses anos. E naquele momento eu era reconhecido na fila do caixa. E fui muito entrevistado, uma coisa absurda. Foi um livro que ninguém imaginava, muito menos eu, que fosse ser recebido tão calorosamente. Não é que eu esteja menosprezando a experiência de agora, mas eu já havia tido meus cinco minutos de fama nessa época. Eu sempre digo isso: se tem algum autor realizado na Feira, sou eu. Porque o Dicionário me deu isso.
O que eu recebi de retorno afetivo por ele não se pode imaginar. Eu tenho ainda guardadas muitas cartas da época, antes do e-mail, de gente que me escrevia: "O senhor me devolveu minha infância". Sabe, uma coisa muito calorosa. Espero que não sejam só os do Dicionário..., mas eu encontrei meus leitores.
ZH - E o senhor pensa em reeditá- lo, talvez incorporando gírias surgidas com a geração mais nova?
Fischer - Desde a primeira edição, eu tenho sempre um exemplar comigo em que eu vou anotando, sempre que me vem alguma coisa nova, boto na beira, na margem, um papel dentro. Eu já fiz duas revisões do Dicionário e certamente devo fazer uma terceira. Eu tenho um projeto de um livro que não tive tempo de escrever. Seria um meio-irmão do Dicionário..., um dicionário das coisas da cultura de Porto Alegre. Mas isso ainda está embrionário: lugares, mistérios, mitos, figuras, desde tu dizer quem foi a Elis Regina, que é uma figura de referência, até coisas como "qual é a natureza do Guaíba? É rio, não é rio?" Isso é legal, é uma coisa da mitologia da cidade. Essa ideia me veio da leitura de um texto do Jorge Luis Borges, o porto- alegrense mais ilustre que existe. Na verdade é um pedaço de um ensaio dele sobre a poesia gauchesca em que ele fala de "mistérios parciais", e a expressão me ficou.
ZH - Entre as mudanças pelas quais a Feira passou, está o fim da lista de mais vendidos. Algumas vozes, como a do seu próprio editor na L&PM, Ivan Pinheiro Machado, criticam esse fim. O senhor pensa parecido?
Fischer - Penso. Acho uma pena que não haja mais a lista, eu participei disso na origem, quando estava na Prefeitura. Acho que era um bom sintoma, um assunto, e era uma forma de debater a natureza da Feira com dados.
ZH - O desconto de 20% também caiu em desuso com o passar dos anos.
Fischer - O que é lamentável. O desconto certamente era um dos atrativos da Feira em relação à compra cotidiana e rotineira de livros. E em certo momento simplesmente foi liberado o desconto geral e alguns passaram a dar, outros não. Hoje, não sei se alguma banca dá desconto.
Entrevista
"Se tem um autor realizado na Feira do Livro, sou eu"
Patrono da 59 ª edição da Feira, Luís Augusto Fischer fala de sua relação com o evento e da condição de homenageado
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