Muito já se escreveu sobre O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo. E algumas imprecisões de interpretação foram tão repetidas que se transformaram em verdade. Uma delas se refere ao enquadramento da obra como romance histórico. Com a chegada às telas de uma versão do romance para o cinema, com direção de Jayme Monjardim, essa "classificação" volta a aparecer. Uma boa hora para defender a ideia, sem a pretensão de encerrar o assunto, de que O Tempo e o Vento não é e nem pode ser um romance histórico.
Inicialmente, é preciso dizer que não existe consenso sobre o gênero em que se enquadra a obra mais expressiva de Erico Verissimo. Se alguns a consideram um romance histórico, outros acreditam tratar-se de um épico. Também foi chamada de crônica política, novela, romance de formação e, pelo próprio autor, de romance-rio. Pela complexidade da trilogia, seja pela alternância de perspectiva narrativa ou pela própria estrutura, é natural a variedade de definições. O "problema" é que essas leituras geralmente partem de extratos narrativos isolados do romance.
Publicado em três partes (O Continente, O Retrato e O Arquipélago), o romance foi concebido como uma unidade e preserva as mesmas características estéticas e formais em seu conjunto, variando apenas as questões temáticas. Por isso, para fins de uma definição de gênero, é fundamental considerar a trilogia como um todo.
Em O Continente, prevalece uma visualização mítica da formação do povo gaúcho, projetada em Pedro Missioneiro, um índio com poderes especiais que prevê sua própria morte pelos irmãos de Ana Terra, seduzida e grávida. Este personagem é a "fonte" de tudo e o seu enlace com Ana Terra sinaliza a miscigenação entre o índio e o bandeirante vicentino. As virtudes mágicas do índio transformam-no em um "ser" superior (a-histórico) que promove o início de uma realidade histórica. Em O Retrato, a ficção apresenta basicamente os dramas passionais de Rodrigo Terra Cambará, num momento de crise de valores da aristocracia rural, e os embates ideológicos que determinam o futuro da família. Em O Arquipélago, a narrativa promove uma reflexão sobre a história recente (Era Vargas), da ética à moral, da política à sociologia, da arte engajada à alienação.
Ligando os episódios da narrativa percebe-se claramente um fundo histórico bem demarcado. Esses recortes da história podem ser constatados na inclusão de personalidades reais na ficção (Pinheiro Machado, Getúlio Vargas, Carl von Koseritz), na datação de fatos relevantes, na exposição de aspectos políticos-ideológicos e na reprodução de conteúdo de jornais. No entanto, os elementos que formalizam uma "representação histórica", mítica na origem, são suficientes para fazer de O Tempo e o Vento romance histórico?
É certo que Georg Lukács, em seu estudo clássico sobre o tema (O Romance Histórico), aponta que o caráter histórico de uma obra não reside na verdade de eventos e detalhes particulares. Segundo Lukács, os detalhes que garantem a "fidelidade histórica" em Walter Scott, considerado por ele o escritor que melhor personifica o romance histórico, "não são mais que meios para alcançar a mencionada fidelidade histórica, para concretizar a necessidade histórica de uma situação concreta". Em outras palavras, importa mais como o povo foi afetado e reagiu a um determinado evento do que o como e o porquê de tal evento. O romance histórico, para Lukács, deve centrar-se em como o acontecimento histórico afeta a sociedade e como a representação do passado ajuda na compreensão do presente.
Existem muitos aspectos que distanciam a trilogia de Erico Verissimo do romance histórico definido por Lukács, apesar de haver outros que a aproximam - dependendo do episódio analisado. Embora a preocupação com a verossimilhança esteja na base de sua criação literária, a simples representação não credencia uma narrativa ao gênero de romance histórico. Na obra, a fidelidade histórica reside nos pequenos detalhes - datas, nomes, fenômenos naturais e sociais, ações e reações registradas na história oficial - e raramente na psicologia histórica dos personagens (salvo Carl Winter e Floriano Cambará), no "aqui e agora de suas motivações psíquicas e de sua atuação", como demonstra Lukács em relação a Walter Scott.
Além disso, o momento representado em O Retrato e O Arquipélago carece de eventos históricos. Frederic Jameson (O Romance Histórico Ainda É Possível?) afirma que, ao contrário de Guerra e Paz, de Tolstoi, Ulysses não é considerado um romance histórico porque neste não existe um grande evento público "que faça a mediação entre seus tempos individuais simultâneos e o tempo histórico do mundo público". Jameson salienta que o romance não pode ser apenas a representação de um período de transição histórica, mas também "a encenação de uma revolução e uma contrarrevolução; de um daqueles eventos históricos paradigmáticos, como a própria guerra, que sempre devem estar no centro de um romance histórico para que ele se qualifique como tal."
Em O Retrato e O Arquipélago, os eventos históricos principais são as revoluções de 1923 (Lenço Encarnado) e de 1930 (O Cavalo e o Obelisco), que podem muito bem ser encaradas como "golpe" e não como "revolução". Esses acontecimentos são representados de maneira distante. Não se percebe os reflexos das tensões sobre o povo, as pessoas comuns, mas apenas sobre a oligarquia gaúcha representada pela família Cambará. Desta forma, o impacto dos grandes eventos em O Tempo e o Vento não pesa sobre "a sociedade", mas apenas sobre a elite burguesa que transita em torno do Sobrado. O mesmo não ocorre na representação da Revolução Farroupilha e da Revolução Federalista, em O Continente, o que em parte explica certo consenso sobre as características do romance histórico na primeira parte da trilogia.
É importante salientar que o distanciamento da trilogia em relação ao padrão da narrativa histórica não significa limitação estética. Pelo contrário, amplia o valor da obra enquanto produto nascido dentro do contexto do pós-modernismo, aberto para a atualidade, mas que também se apropria da tradição dos predecessores. Mais importante, talvez, do que insistir em uma definição de gênero ou subgênero, o que em geral reduz a análise à solução do "problema", é definir o lugar de O Tempo e o Vento na tradição literária brasileira e apontar o legado do projeto romanesco de Erico Verissimo, bem evidente em Josué Guimarães, Luiz Antonio de Assis Brasil e Tabajara Ruas, para ficar nestes poucos.
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"O Tempo e o Vento" não deve ser visto como romance histórico
Artigo defende que não há consenso sobre o gênero da obra mais expressiva de Erico Verissimo
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