Há manchas de sangue e pichações nas paredes do antigo matadouro da cidade e nos vastos pavilhões neomouriscos que o compõem, sinais de uma história eclética e rica que transformou o complexo, chamado Matadero Madrid, de abatedouro em prédio abandonado invadido em centro cultural que exibe arte contemporânea, peças de teatro e documentários.
Agora ele está evoluindo para se tornar um laboratório cultural, onde uma nova estratégia de patrocínio das artes está sendo testada. Empresas e instituições estão fornecendo suporte financeiro para complementar o subsídio do governo, cada vez menor, mas com uma diferença: em vez de mandarem só o cheque, estão se mudando para lá.
Dentro dos 5,4 mil metros quadrados do núcleo, há teatros e espaços de exposição que, só no ano passado, atraíram mais de 500 mil visitantes para eventos de arte, música e peças de vanguarda - além de cinco instituições particulares, incluindo uma associação de designers, a fundação de uma editora e os escritórios da austríaca Red Bull, aquela do energético.
Elas estão no prédio sem pagar aluguel, mas isso porque investiram milhões na remodelação dos pavilhões e na programação das exposições de arte e festivais de música.
Na Espanha, essas novas parcerias são seladas por necessidade, já que o respaldo do governo para a cultura caiu quase pela metade nos últimos quatro anos, consequência da crise econômica que estourou no fim de 2008 e perdura até hoje. Em outros países europeus em dificuldades, as medidas de austeridade forçaram as instituições a cortar programas e tentar atrair investimento privado.
Entretanto, há certa cautela em relação à adoção dessa saída. Está cada vez mais comum ver o lado negativo do patrocínio corporativo se manifestando na pesada influência que passam a exercer na cultura. Um bom exemplo é a exposição realizada em um museu de Paris este ano dedicada à "arte" do perfume Chanel No.5; na França essa tendência virou motivo de chacota e ficou conhecida como "mostra publicitária".
Na Espanha essa crítica não existe, pois aqui as instituições culturais estão lutando para evitar mais cortes em suas atividades. Dentro do Matadero, os vizinhos corporativos são recebidos e tratados como sócios que dividem a coordenação do complexo bem como as discussões sobre a programação, em um modelo que intriga os executivos das artes de outros países que vêm a Madri para estudá-lo.
A Casa del Lector, fundação que promove a leitura criada pela mesma fundadora da editora de textos Anaya, se mudou para o Matadero no ano passado, depois de gastar US$16,8 milhões e transformar o abatedouro de porcos do complexo em um espaço moderno e altamente tecnológico para a realização de exposições, oficinas e palestras sobre temas como "Drácula" de Bram Stoker e as capas dos primeiros romances espanhóis.
A Red Bull, cujo nome aparece na frente de um antigo estábulo, se mudou para lá em 2011 e gastou mais de US$$ 2,2 milhões para criar sua própria academia musical e jardim no interior do prédio, onde há também tendas caprichadas montadas sobre a mesma terra vermelha que geralmente se usa nas arenas de touradas. A academia inclui um estúdio de gravação profissional e espaço para apresentações que faz parte da rede internacional de oficinas de música e shows que a empresa organiza desde 1995, em cidades como Nova Iorque e Berlim, para se promover.
- Estamos criando um novo modelo de parceria. No cenário atual do país, os museus têm patrocinadores, mas eles não se envolvem com a programação, os horários, a forma de criar e administrar o espaço - explica Victor Flores, diretor cultural da Red Bull na Espanha, que afirma ser essa a primeira vez que uma companhia trabalha tão próxima a uma instituição cultural pública na Espanha.
A Red Bull está negociando uma extensão para o aluguel de três anos em parte porque se interessa pela demografia dos visitantes do Matadero, muitos dos quais têm entre 20 e 30 anos.
- Para nós foi uma alternativa inovadora, ousada e inédita em relação às artes - afirma Flores.
Enquanto isso, o Matadero continua à procura de novos parceiros para financiar a reforma multimilionária de dois pavilhões que continuam vazios. O arranjo atual permite que o complexo prospere a ponto de conquistar um lugar na lista das 10 instituições culturais espanholas que melhor driblaram a crise, compilada pelo Observatório da Cultura, uma ONG em Madri que acompanha os gastos com a cultura e reúne um painel de especialistas para destacar os melhores resultados.
- Nenhuma das instituições culturais espanholas vai recuperar o volume orçamentário que tinham. O caminho alternativo é essa combinação de injeção pública e privada - patrocínios, projetos comerciais e contribuições individuais - afirma Alberto Fesser, diretor do observatório.
Nesse aspecto, ele diz que o Matadero é inovador. A arte de negociar, segundo os executivos das artes, é o segredo da sobrevivência.
- É bem diferente do que acontecia antigamente. Em tempos passados, eu recebia o dinheiro e não precisava bater na porta de outras instituições. Éramos ricos. Com a instauração da crise, é preciso encontrar novas opções. Temos que mudar de tática - conta Carlota Álvarez Basso, diretora de programação do Matadero, que foi nomeada em 2012 e cujo objetivo é administrar uma mudança de paradigma na arrecadação de fundos.
Quando o Matadero foi inaugurado, em 1911, era pioneiro na arquitetura industrial; em 1996, porém, tinha fechado as portas, relegado aos invasores e sem-teto, cujas pichações foram mantidas para "dar um clima" a um dos restaurantes descolados do complexo. Sua reconstrução como centro cultural começou em 2007, antes de os mercados financeiros começarem a entrar em pânico com a situação financeira difícil da Espanha e outros países.
Seus executivos estão bolando outras estratégias de cortes de custos, desde a busca por coprodutores em países prósperos até a convocação de parceiros insólitos ou totalmente fora do ramo, como a seguradora alemã que emprestou uma coleção de arte moderna para uma exposição.
Para completar o orçamento de US$3,8 milhões que a Prefeitura de Madri reservou para a construção e administração do Matadero, o centro gera renda através de dois restaurantes e vai abrir um negócio de aluguel de bicicletas. Com o que recebe dos galpões e as taxas faturou mais ou menos US$930 mil no ano passado.
Álvarez também pediu a ajuda das embaixadas estrangeiras para ajudar a financiar o intercâmbio de artistas visitantes, iniciativa que faz parte de um plano maior de desenvolver o perfil internacional do Matadero.
Sua busca por alternativas é reflexo das dificuldades sistêmicas por que passam as instituições culturais. O governo impôs um imposto de 21% sobre a venda de ingressos e, apesar das promessas das autoridades e da forte pressão, as empresas não podem deduzir as contribuições de patrocínio.
A ameaça de novos cortes de orçamento do governo inspirou o Teatro Español - que administra um teatro de vanguarda inspirado no Matadero - a buscar produtores particulares para montar peças menores e formar alianças com instituições de língua espanhola fora do país, segundo Natalio Grueso, diretor de programação de artes teatrais de Madri.
Ele observa que o orçamento anual para o Teatro Español, que hoje é de US$ 8 milhões, é metade do que era há 10 anos - e que os cortes continuam.
- É importante buscar novas alternativas - finaliza.