As manifestações nas ruas do Brasil tornaram visível não só a indignação das massas, mas o trabalho de um coletivo de jornalistas independentes que acompanharam as movimentações de dentro, a rede Mídia Ninja. Transmitindo online em tempo real, os ninjas se tornaram referência - e, pouco tempo depois, foram criticados e defendidos apaixonadamente por suas relações com o coletivo Fora do Eixo. Um dos coordenadores da Mídia Ninja, o jornalista Bruno Torturra, 34 anos, esteve no Estado esta semana para a Aula Inaugural dos cursos de Comunicação Social da Unisinos, onde concedeu a seguinte entrevista a ZH. Ele deve voltar a Porto Alegre nesta segunda-feira para participar do 26º Set Universitário da PUCRS.
ZH - A Mídia Ninja se tornou referência nas coberturas em tempo real das manifestações de junho. Qual é a perspectiva de o grupo trabalhar com narrativas jornalísticas mais complexas, que talvez necessitem de um trabalho maior de edição?
Torturra - A gente estava planejando a Mídia Ninja com mais calma e tempo do que parece. Fizemos um chamado público antes dos protestos, falando sobre demissões nas redações, como isso poderia abrir um campo de possibilidades para pensar formas criativas de montar redações de veículos independentes. Os protestos precipitaram tudo isso. O que a gente tinha na mão para cobrir os protestos no momento em que eles começaram era o streaming, que já vínhamos fazendo sem a temperatura das ruas, para programas de entrevistas e debates. O plano sempre foi não só cobrir ao vivo mas voltar para casa, para publicar no dia seguinte, ter um site próprio. Esse processo é mais complicado do que transmitir ao vivo. Precisa de mais dinheiro, mais tempo. Essa intenção não saiu da nossa cabeça, e é mais importante do que nunca, porque agora que construímos o imaginário de um jornalismo independente gigantesco, precisamos evoluir.
ZH - Desde o início, a Mídia Ninja assumiu sua identificação com as manifestações. Mas mesmo nos movimentos não há consenso sobre a estratégia de luta, se por pressão política ou com táticas mais violentas, como a dos Black Block. Qual estratégia a Mídia Ninja pensa ser a mais adequada?
Torturra - Eu não consigo te responder do ponto de vista da Mídia Ninja porque somos um grupo muito heterogêneo. Eu falo sobre a Mídia Ninja, mas não posso falar em nome da Mídia Ninja. O que posso dizer é em nível pessoal: entendo a motivação e de onde vem o sentimento do Black Block. Entendo o significado simbólico e físico da destruição de patrimônio privado para questionar o capital, mas pessoalmente não me identifico, e acho que no médio prazo isso acaba desmobilizando muita gente para seguir na rua avançando na pauta, na ocupação do espaço público, no diálogo com a própria polícia. Talvez seja ingênuo da minha parte, mas eu boto fé no diálogo. E nesse sentido, acho que quanto mais violento for o embate na rua, menos a gente vai avançar politicamente. A gente não está discutindo mais reformas estruturais, financiamento público de campanha, reforma das polícias militares, democratização dos meios de comunicação, uma série de pautas que eu gostaria de ver, e agora fica esse maniqueísmo, máscara ou não máscara... Não é o debate que eu gostaria de ver.
ZH - A noção de imediatismo da internet é um obstáculo para que muitos se dediquem a processos políticos necessários mas não tão empolgantes?
Torturra - Não tenho uma resposta fácil para essa pergunta, porque ao mesmo tempo em que a rede cria um imediatismo que é nocivo se ficar só nele, ela também é capaz de atrair pessoas que estavam distantes de processos políticos, que não estavam nos grêmios, na estrutura partidária, mas que agora conseguem sofisticar o discurso e a participação política. A gente viveu um momento muito inflacionado, havia muita gente na rua, ficou todo mundo meio tonto. Eu ainda estou tentando descobrir se esse debate está evoluindo ou não, frequentando ONGs, grupos de ativisimo, tentando me aproximar e vendo que caminho eles pretendem seguir. O pior saldo que poderíamos ter depois de tudo é o cinismo, essa galera voltar para casa achando que não adianta nada.
ZH - Depois que se tornou mais conhecida a ligação entre a Mídia Ninja e o Fora do Eixo, artistas que já haviam trabalhado com o coletivo vieram a público com duras críticas. Como responde a elas hoje?
Torturra - É uma pergunta difícil, porque as cobranças vêm de muitos lados e em muitos tons. Acho que há muita injustiça sendo cometida nesses relatos, há um oportunismo muito grande de pessoas que têm diferenças com o Fora do Eixo, e eu não as questiono, acho que as pessoas se desentendem e se relacionam de maneira múltipla. O Fora do Eixo é uma rede de pessoas, não uma empresa, uma ONG. É um modo de vida que as pessoas estão tentando estabelecer, um laboratório. É evidente que com muita gente jovem do Brasil inteiro tentando descobrir como mora junto, como namora junto, como constrói festivais, faz mídia, discute política, vai-se gerar uma série de mágoas. Elas estão sendo cobradas em bando, começou a virar um linchamento, uma grande desinformação sobre o que o Fora do Eixo realmente é. Nunca testemunhei nada daquilo que os acusam. Sempre me relacionei intensamente com eles, e os considero pessoas muito generosas e muito tolerantes em quase tudo o que fazem. Seita, machismo, são coisas que passam longe da minha experiência no Fora do Eixo.
ZH - Tantas cobranças não são sinal de que muitas coisas ao longo dos anos de atuação do Fora do Eixo não foram bem resolvidas?
Torturra - Com certeza, o holofote que foi colocado no Fora do Eixo, especificamente na figura do Pablo Capilé, fez com que todos os que tinham coisas mal resolvidas com ele se juntassem para ir para cima, para tentar acabar com a credibilidade da pessoa em primeiro lugar e depois da rede que ele ajudou a criar. É evidente que há ali no meio das acusações coisas que procedem e que eu espero que virem um processo autocrítico sério. Eu não sei quais são, porque nunca testemunhei nada remotamente parecido com o que foi acusado. Tem uma crítica que acho importante, que eu esperava que gerasse um debate sério, não uma demonização: a questão da grana. O que o Fora do Eixo se propõe de fato é criar novas relações pessoais e profissionais que não sejam mediadas por grana. Começaram pela cultura, e foi um processo díficil, porque uma grande quantidade de artistas não admite construir algo que não tenha dinheiro como base envolvida.
ZH - Talvez porque a remuneração de um artista por seu trabalho seja muitas vezes a única forma de ele continuar produzindo?
Torturra - Sim, é legitimo. Não estou fazendo uma crítica a eles por exigirem isso, só digo que são dois mundos colidindo. E não é que o Fora do Eixo ache que não tem que ter grana. É que a grana é escassa para fazer o tanto de coisas que eles querem fazer. Os patrocínios às vezes parecem grandes, mas é para fazer muita coisa, grandes festivais no Brasil inteiro, circular gente, manter casas... Do jeito como essa coisa foi lidada ao longo dos 10 anos do Fora do Eixo, passivos foram se acumulando. Virou escândalo no Facebook um episódio de não pagamento de cachê em 2006, e as pessoas foram conhecer o Fora do Eixo por esse episódio. E não acho isso justo, porque é uma rede complexa, feita de pessoas que trabalham no Brasil inteiro, que empoderaram muitas pessoas de cidades pequenas que nunca tiveram condições de disputar a cultura.
Entrevista
Para coordenador do Mídia Ninja, quanto mais violentos forem os confrontos em protestos, menos se avança politicamente
Bruno Torturra: 'O pior saldo das manifestações seria o cinismo'
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