Há anos mantenho diante da minha mesa de trabalho uma gravura intitulada Os Imigrantes, que me foi presenteada pela autora, dona Paulina Eizirik, artista que nos deixou no dia 9 deste mês de agosto. A imagem impressa é repleta de cor, como eram repletos de cor os trabalhos de dona Paulina, e remete à vida dos judeus nos schtetls, os vilarejos no leste da Europa nos quais fixavam moradia.
A história dessa gravura é, para mim, cheia de significado. À época, uns 10 anos atrás, dona Paulina fazia uma exposição no Centro Cultural CEEE Erico Verissimo, ali na Andradas, e me pediu um texto vinculado a seu trabalho e às tradições judaicas, tarefa que aceitei com entusiasmo. Passada a vernissage, ela me convidou a sua casa e, no prédio em frente, a seu ateliê. Lá, abriu uma das gavetas em que mantinha suas gravuras e me pediu que escolhesse aquela que me dissesse ao coração. A tarefa era dificílima: dali, daquelas gravuras, saltaram mulheres, crianças, judeus ortodoxos, Torás, mezuzás, candelabros, estrelas-de-Davi, símbolos de um judaísmo que nem mais existe mas que, em grande medida, alimenta um imaginário belo, mítico e ancestral. Escolhi essa, Os Imigrantes, pelas cores, que remetem à bandeira do Brasil, e por essa atmosfera de júbilo e agradecimento à terra que acolheu os primeiros que aqui chegaram e que possibilitou trabalho, estudo e cidadania.
Com a triste notícia de sua morte, reflito que Dona Paulina teve uma vida rica e plena, pela qual, principalmente através de seus quadros, fazia questão de agradecer. Nascida na Polônia, em Varsóvia, veio para o Brasill aos nove anos de idade. Naturalizou-se brasileira, formou-se em odontologia e se tornou, senão a primeira, uma das primeiras mulheres dentistas do Estado. Trabalhou até a aposentadoria e, aos 60 anos, resolveu dedicar-se a uma antiga paixão, as artes plásticas. Sem apego ao realismo ou ao figurativo, dona Paulina praticava aquele tipo de pintura naïf de invejável vitalidade, obra que foi exposta e apreciada tanto no Exterior quanto no Brasil e que se tornou referência de pintura "ingênua". Além do sentido estético, a produção de dona Paulina é cheia de senso de humor e de toques de um amor inquebrantável com relação à vida. Não foi por outro motivo que, a partir de dado momento, passou a grafar a palavra "Chai", em caracteres hebraicos, junto à assinatura.
"Chai" significa vida - e sempre estarão vivos os que são admirados, queridos e, portanto, lembrados.