Eu já estava me sentindo quase um derrotado, como muitos dos personagens de suas letras e crônicas. Tentei de todas as formas falar com ele, sem sucesso. Consegui três telefones, dois fixos e o celular. Um dos fixos, fiquei sabendo ao ligar, está com a filha mais velha. Para o celular, liguei várias vezes, deixando recado. No outro fixo, depois de algumas tentativas, consegui falar com Mary, mulher de Aldir. Disse que ele sabia de mim, que o entrevistara anos antes e tal. Mary me passou o e-mail, dizendo que seria a melhor forma de contato. Enviei uma mensagem bem afetuosa, entre outras coisas brincando que sou seis dias mais moço do que ele. Passaram-se 20 dias e eu já nem contava com o retorno, quando Mary entrou em contato: nos últimos tempos, Aldir estava mais vivendo na casa do pai dele, Alceu, 90 anos, que mora sozinho em outro bairro, tem problemas decorrentes da idade, mas não quer deixar a casa nem aceita cuidadores. Responderia às perguntas por e-mail. Foi o que fez, rapidamente, com a justificativa incontornável: "Estamos passando um período brabo. Meu pai está em estado confusional, quer tomar cerveja, sair para restaurantes com os velhos amigos, mal se aguentando em pé, tudo muito triste. Detesto atuar como médico e estou sendo obrigado a isso, o que me custa caro". Confira trechos:
Zero Hora - O livro traz um desnudamento seu. Por que decidiu fazer isso?
Aldir Blanc - Sem dúvida, é um desnudamento. Concordei com isso porque a biografia foi escrita pelo Luiz Fernando Vianna, um filho para mim. Não acho que concordaria se fosse escrita por outro autor.
ZH - Sua reclusão é um dos temas recorrentes no livro. Qual a razão dela?
Aldir - É uma longa história. Começou com a morte de minhas filhas gêmeas. Fui ficando cada vez mais quieto, calado, amigo dos livros. Isso foi progredindo. Começaram os problemas com o álcool. Em 1991, fraturei o fêmur, uma fratura incomum em lascas verticais, operação difícil, pós-operatório infernal. Fiquei oito meses de cama, tinha problemas de queda de pressão etc. Vieram os netos (fui avô de quatro antes dos 50 anos). Fiquei bem melhor, mas já havia criado um hábito. A diabetes de 2010, me proibindo (o que nem sempre respeito) de beber foi o "tiro de misericórdia". Mas acho que isso tem um pouco de folclore. Saio quando preciso, mas me sinto bastante ansioso e aí, pronto, acabo apelando para o "antiderrapante" e bebo, mas bem menos do que dizem. Como dizia Paulo Mendes Campos: "Minha fama de bêbado me fez mais mal do que a bebida".
ZH - E seu trabalho como letrista, compositor, sofre hoje com essa reclusão?
Aldir - Não, e nunca sofreu. Fui a todos os bares do país, viajei o Brasil todo como percussionista (medíocre) e, hoje, já com 66 anos, fraturado e diabético, gosto de ficar em casa, mas não me sinto "preso" ou qualquer coisa assim. Minhas vidas pessoal e profissional estão feitas. O que vier é lucro...
ZH - Você diz ter pânico do palco. Não conseguiria fazer shows como Vinicius e Toquinho, em que Vinicius um pouco cantava em dueto, outro pouco recitava poemas, outro pouco contava histórias?
Aldir - Os shows constantes são uma impossibilidade. Não durmo várias noites antes, tenho diarreias e náuseas no dia, boto sangue pelo nariz, às vezes sujando a camisa pouco antes de entrar no palco. Quem quer ver isso? O diabo. E aí encho a cara e nem sempre as coisas vão como seria legal no palco. Não dá. Acontece. Tenho 17 anos de terapia com dois dos melhores. Melhorei em muita coisa, mas show só muito esporadicamente.
ZH - Como você recorda Elis Regina?
Aldir - Como a melhor, a mais talentosa, a mais compreensiva, a cantora que mais sacou quem eu era pessoal e artisticamente. Elis gostava das coisas que fazíamos fora dos padrões, ou seja, nem Minas nem Rio, como Cabaré e Caça à Raposa. Ela dizia: "Vocês vão ter que me prometer que nunca vão deixar de fazer isso." Era incrível, avassaladora. Se você estivesse com algum problema, ela ia tentar resolver. Na véspera da estreia do show Transversal do Tempo (no Rio), minha mãe estava hospitalizada, e ela apareceu para rezar. O quadro da minha mãe era desenganado e se reverteu. Ou seja: se quiser chamar de milagreira, pode.
ZH - Você acha que o desmantelamento das grandes gravadoras trouxe prejuízos à música? Se você e João Bosco surgissem hoje, teriam chance real de sucesso?
Aldir - Esse desmantelamento mascara uma roubalheira faraônica, monumental! Estão todos nessa quadrilha: gravadoras, editoras de músicas, várias arrecadadoras, compositores que adoram aparecer a qualquer preço, toda a canalha - além, é claro, da máfia que se esconde nos meandros bastante sujos da internet. Se João e eu surgíssemos hoje, ainda mais sem Elis, continuaríamos como engenheiro civil e psiquiatra.
Adendo: um comentário no livro esclarece a pergunta que todos os admiradores da dupla ainda se fazem: por que Aldir Blanc e João Bosco interromperam a parceria?
"Prefiro dizer, cinicamente, o seguinte: todas as versões são verdadeiras. Escolham a sua, embrulhem para presente e divirtam-se. A minha versão é que o João cantava cada vez mais onomatopeias, as letras eram cada vez menos cantadas. Eu não sentia receptividade em relação ao que estava mostrando como letra. Então, fui saindo. A gente, que se falava de dois em dois dias, passou a se falar semanalmente, mensalmente, e depois passou a não se falar. É isso. Nunca destratamos um ao outro. Acabou, morreu, mixou. Acontece em casamentos, em amizades, em botequins."
Entrevista
Aldir Blanc sobre seu pânico de palco: 'Os shows constantes são uma impossibilidade'
O músico fala sobre sua carreira e vida pessoal
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