Talvez um ponto de partida para se tentar explicar o poder singular, em camadas, dos quadros de Peter Sacks - a maneira como eles sugerem uma atenção meticulosa, quase penitencial, aos detalhes, e até mesmo como transmitem uma narrativa visual mais ampla - são as caminhadas que ele fazia ao crescer na África do Sul durante os anos 1950 e 1960. Foi nessas caminhadas ao redor das montanhas de Drakensberg que Sacks, filho de pais brancos liberais (seu pai, um renomado médico, dava aulas em uma escola de Medicina para negros), encontrou pinturas rupestres antigas feitas pelos bosquímanos sul-africanos.
- As imagens pareciam vir de dentro da rocha, surgindo de algo que parecia ser rachaduras na parede -, lembrou recentemente. Havia algo nelas - pinturas de caçadores e animais, reais e mitológicas - que lhe pareceu tanto "misterioso" quanto "perseverante", deixando traços duradouros de "pessoas que tinham sido forçadas a sair da terra".
Em algum momento por volta dos 16 anos de idade, Sacks começou a cultivar um hábito que levaria por toda a vida: relatar as suas caminhadas em cadernos, onde quer que elas o levassem, desenhando e escrevendo sobre o que viu - "capturando", como disse, "o que de outra forma poderia se perder na experiência. "E durante os quase 45 anos que se passaram desde então, ele continuou a ser tomado pelo potencial das palavras e das imagens, abordando não só os prejuízos trazidos pela história, mas também oferecendo consolo.
Em uma carreira artística que começou com um período de 14 anos dedicado à poesia e, em seguida, tomou um rumo inesperado e vigoroso em direção à pintura, Sacks usou seus olhos e ouvidos afiados para representar os enigmas e os horrores do mundo como ele o enxerga. Suas últimas obras - 21 quadros que estão atualmente em uma exposição na galeria Paul Rodgers/9W em Manhattan - recorrem a ambas essas faculdades, combinando textos escolhidos cuidadosamente com imagens semiabstratas para evocar os assuntos e temas que o inquietam desde a juventude.
Não surpreende que entre eles, em primeiro lugar, estejam as múltiplas injustiças que ele testemunhou na África do Sul. Em 1970, pouco antes de fazer 20 anos, desmotivado com a evolução da situação política do país, bem como as dificuldades do movimento antiapartheid e à medida que se distanciava de seus simpatizantes brancos, Sacks deixou a cidade de Durban, onde nasceu. - Para mim, ser branco na África do Sul naquela época significava me sentir ilegítimo e viver com vergonha - disse ele em uma entrevista em 2006.
Sacks foi para Princeton, passou três anos em Oxford com uma bolsa Rhodes e em seguida voltou para os Estados Unidos para cursar pós-graduação em Inglês na Universidade de Yale. Sua tese de doutorado se tornou um livro sobre elegias inglesas, e o artista passou a ensinar literatura em universidades, incluindo Johns Hopkins e Harvard, onde hoje é professor titular.
Ele também escreveu cinco elogiadas coletâneas de poesia motivada por imagens; a segunda, "Promised Lands" ("Terras prometidas", em tradução literal, de 1990), ganhou elogios de seu companheiro, o escritor expatriado J.M. Coetzee, e o último, "Necessity" ("Necessidade", em tradução literal, de 2002), foi comemorado pelo poeta Robert Creeley como "uma extraordinária fusão de uma percepção aguda e recursos formais". Nada disso sugere o que viria a seguir: a mudança radical dos interesses e aspirações que motivariam Sacks, que acabara de fazer 50 anos, a passar da página para a tela.
"Ele tem o tipo de carreira com a qual os poetas eruditos sonham e da qual não se costuma abrir mão, mas esse é exatamente o diferencial dele", escreveu o poeta William Corbett no catálogo da segunda exposição de Sacks em Paris, em 2007.
Apesar de todas essas transformações terem sem dúvida se iniciado há mais tempo do que pode parecer, Sacks conta que a sua virada se iniciou no verão de 1999. Ela aconteceu durante um período turbulento que culminou com seu divórcio da pintora Barbara Kassel e seu casamento, enfim, com a poetisa Jorie Graham. Ele estava em Marfa, Texas, como escritor residente da Fundação Lannan, quando percebeu que não conseguia escrever. - Eu fiquei completamente sem palavras, sentindo-me em uma paisagem árida. - lembrou ele.
Sacks recorreu a seu passatempo já provado e aprovado, e voltou a fazer caminhadas - frequentemente de cerca de 50 quilômetros e, por vezes, durante a noite. Em vez de escrever, comprou uma câmera descartável e começou a tirar fotos do campo. Mas com a sensação de que as imagens não captavam o que estava sentindo, começou a carregar um frasco de corretivo e, em um "sonho de apagamento", começou a pintá-las de branco "sistematicamente".
- As pinceladas breves deixavam pequenas rugosidades, como mapas do silêncio. - lembrou ele.
Então, ao decidir que as imagens precisavam de mais cor, fez tinturas vegetais, misturando mostarda, pimentões e café com o corretivo. Voltou para casa em Cambridge, Massachusetts, com uma caixa de sapatos cheia de fotografias - "foram os meus primeiros trabalhos fora dos livros" - e uma nova convicção. "Senti coragem para sair e comprar algumas telas", disse ele.
Daquela época em diante, uma visão pictórica começou a tomar corpo. Mesmo que não totalmente formada - considerando que o único treinamento formal de Sacks haviam sido algumas poucas aulas de desenho - ela já começava a se consolidar.
Em 2001, Sacks e Graham estabeleceram residência na Normandia, onde passavam parte do tempo. Lá, ele montou um estúdio, passando a trabalhar em pinturas de tamanho médio e em vários painéis, em óleo e acrílico, alguns feitos com espátula. Três anos depois, fez a sua primeira exposição, em Paris, que contou com pinturas semiabstratas impregnadas de sua relação conflituosa com a África do Sul: a bela e encantadora paisagem justaposta a uma bárbara falta de humanidade.
Essas obras incorporam materiais como linho queimado, pedaços de caixas de papelão e jornais velhos; os temas implícitos não são irônicos, mas angustiados, tendo a ver com o sofrimento mundial, os deslocamentos, a prisão e o exílio.
Apenas uma das obras trazia traços das raízes literárias profundas de Sacks, a palavra "Zeugnis" (de um poema de Paul Celan) em letras maiúsculas, cada uma com 33 centímetros de altura. Por volta da sua segunda exposição em Paris, no entanto, a paixão permanente de Sacks pela escrita estava se reafirmando. Ele havia começado a datilografar colunas de texto de Kafka, Yeats, Osip Mandelstam e outros escritores em tecido, utilizando uma máquina de escrever manual.
Depois de datilografar uma passagem de "O Processo", de Kafka, lembrou ele, "virei o tecido de cabeça para baixo e a imagem pareceu ter uma forma humana". Algo semelhante aconteceu com "A Torre", de Yeats, criando uma forma espectral feita de palavras.
- Quando comecei o trabalho físico da datilografia, era como se eu pudesse pintar com palavras. Eu não sentia que estava transcrevendo textos - contou Sacks, - As palavras, acrescentou ele, eram um meio que "poderia muito bem ter sido a pintura.
Essa abordagem deu lugar a uma interação pendular entre o textual e visual em seu trabalho, possibilitando que os espectadores tivessem a liberdade de decifrar textos ou de simplesmente passar o olho sobre eles. Trata-se de uma dinâmica aparente em seu trabalho mais recente, que comprova o interesse contínuo de Sacks pela formação de uma linguagem visual que incorpore a escrita sem ser dominada por ela.
As obras, que incluem três trípticos e uma série que preenche um quadrado de meio metro, baseiam-se mais uma vez em seu uso de materiais simples por meio de colagens (roupas e rendas antigas, papelão, fios, botões, panos e madeira) e de textos ou manuscritos datilografados (trechos do diário de Virginia Woolf, a prosa de Primo Lévi, cartas de soldados de Gettysburg, documentos como a Convenção de Genebra). Dessa vez, porém, os textos não se limitam a colunas, mas passeiam por toda a pintura como rios ou montanhas. E mesmo com toda essa intelectualidade subjacente, as obras como um todo carregam um peso emocional raro no circuito artístico de hoje.
O escritor Louis Menand, autor do ensaio publicado no catálogo da primeira exposição de Sacks em Nova York, observou por e-mail que "estar por perto das telas de Peter é maximizar uma paisagem do Google Earth até o Google Street View desde o espaço sideral".
- De longe, eles são abstratas e pictóricas, mas quando chegamos perto, percebemos que são repletas de detalhes. E não são apenas composições formais; elas, na verdade, tratam de temas específicos. Acho que ninguém integrou o verbal e o visual, sem ser irônico, de um modo tão brilhante quanto o Peter - concluiu Menand.
Atualmente, Sacks faz suas pinturas em um celeiro adaptado em estúdio em Sharon, Connecticut, onde ele e Graham passam parte do tempo, tendo vendido a casa que tinham na Normandia.
Ele é contundente ao afirmar que não se vê como um poeta-pintor, mas há quem possa ficar tentado a encaixá-lo nessa categoria híbrida.
- Eu não escrevo mais - disse ele. - Meu último livro saiu em 2002. Hoje só faço isso.
The New York Times
Peter Sacks, o poeta que virou pintor
Artista sul-africano que escreveu poesia por 14 anos viu a carreira tomar um rumo inesperado em direção à pintura
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