Humberto Gessinger está se preparando para o que ele mesmo diz, bem-humorado, ser "a parte mais difícil de todas", que é dar uma entrevista. Mas, antes de entrar em uma das salas do estúdio Soma, no bairro Partenon, onde escolheu para ensaiar para o começo da sua nova turnê, em Porto Alegre, ele é parado por um grupo de fãs. E os seus admiradores não deviam ter mais que 13 anos. Pediram fotos e autógrafos. O quarteto, inclusive, quer seguir os passos do famoso e, por isso, montou uma banda, a Raio Rock.
É a renovação do público, a qual Gessinger fala que não tem uma fórmula para acontecer. É orgânico. Ao mesmo tempo, é interessante ver o contraste entre artistas que estão começando com outro que já está na estrada há 40 anos. E, em comum, todos possuem entusiasmo ao falar de música, que é atemporal, que consegue interligar gerações.
Nesta entrevista com Zero Hora, o ex-Engenheiros do Hawaii relembra a primeira vez que subiu em um palco, de maneira despretensiosa, em 1985, na Faculdade de Arquitetura da UFRGS, a sua jornada pela indústria fonográfica e, também, como ele enxerga o presente e como projeta o futuro — e, nele, não existe lugar para ficar preso ao passado.
É importante ressaltar que outra matéria recente foi feita com Gessinger e, nela, o músico fala especificamente sobre a nova turnê, que terá a sua estreia no Auditório Araújo Vianna, neste final de semana.
Confira a entrevista na íntegra
Já são 40 anos da primeira apresentação do Engenheiros do Hawaii e, também, da tua estreia no palco. O que lembra daquele dia, Humberto?
Me lembro de estar apavorado. O pessoal que estava comigo, o (Marcelo) Pitz, o (Carlos) Maltz e o (Carlos) Stein, que está no Nenhum de Nós, todos tinham mais experiência do que eu. Cara, tenho fotos tocando violão com 6 anos, por conta de uma música que gravei depois, Era um Garoto que Como Eu (Amava Os Beatles e Os Rolling Stones). Quando era criança, era fascinado com essa música, mas sempre fui muito tímido, nunca tinha tocado para ninguém.
Eu também ouvia aquelas bandas, aqueles dinossauros do rock, como Yes, Pink Floyd, e eles davam a impressão de que era impossível ser músico. Era tão grandiosa a música que ouvia que eu dizia: "Não, isso não é para mim". Então, quando a gente montou a banda, era para participar de uma festa de faculdade, sem a menor perspectiva de aquilo continuar e tomar conta da minha vida. E eu estava apavorado, mesmo. Tinha escrito um material, mas muitas músicas eram brincadeiras. A gente tocava até jingle de extrato de tomate.
Era outra onda. O próprio nome da banda era uma brincadeira que inventei. Quer dizer, se eu soubesse que ia tomar conta da minha vida, teria escolhido um nome mais sério, que não precisasse ser explicado 40 anos depois. Mas foi um pavor de timidez e, depois, um alívio, uma sensação gostosa de ter tocado. O show acabou e eu falei: "Porra, o pessoal reclama desse negócio de música, mas é fácil para caramba. Vamos seguir tocando". Mal sabia que era fácil porque estava só a nossa "brodagem" ali assistindo (risos).
Para esta nova turnê que está começando agora e que vai seguir o ano inteiro, tu disse que nunca trabalhou tanto. Como foi revisitar os dois projetos acústicos?
O da MTV, obviamente, teve uma superexposição. Depois, lancei o Novos Horizontes, que tinha uma coisa diferente: oito músicas inéditas, que é uma coisa que ninguém fazia ou faz. Quer dizer, em um disco ao vivo, em acústico, fazer oito inéditas. E é mais um motivo que me fez pensar em tocar essas músicas, porque as inéditas que estão no disco ao vivo, geralmente, passam meio batidas. As pessoas vão direto no filé, nas músicas que já conhecem.
Tem umas músicas ali que acho que precisam ser ouvidas. Muita gente pode ouvir pela primeira vez. E isso vai virar um disco, que estou pensando em chamar de Revendo o que Nunca foi Visto, que é a primeira frase de O Papa é Pop, e tem essa coisa que é meio uma contradição: como rever o que nunca viu? Mas é o que sinto a respeito de algumas canções do Novos Horizontes.
Uma das funções da arte é, além de, claro, emocionar, é marcar a passagem do tempo. As minhas letras usam muitas imagens do cotidiano
HUMBERTO GESSINGER
Fale mais sobre esse disco.
Vou selecionar 10 dessas músicas dos acústicos para fazer parte do disco, que não sei ainda bem quais são. E vai ter duas inéditas. Uma que eu fiz com o Chico César, Paraíbah, e uma que escrevi e já gravei com o pessoal que tocava comigo nos Engenheiros, no !Tchau Radar! e no Minuano, que é o Luciano (Granja), o Adal (Fonseca) e o Lúcio (Dorfman), que se chama Sem Piada Nem Textão. As 10 músicas serão gravadas no show em São Paulo. Essa é uma informação que ninguém sabe, um monte de gente me pergunta, mas enfim, larguei.
A música que eu escrevi com o Chico César vou gravar agora quando for pra Suécia. Vou mandar a gravação e ele vai botar a voz aqui. Já as 10 músicas, estou tendo um trabalhão para selecionar. Estou priorizando um pouco as que gravei menos vezes. Tenho a impressão de que, talvez, um single saia quando voltar da Suécia, em março. Mas, até serem lançadas, não vou tocar essas duas inéditas na turnê.
Temos data para o lançamento do disco?
Vai depender de quanto tempo demorar a mixagem das músicas ao vivo, mas tenho a impressão que no início de maio. Estava pensando também, quem sabe, em lançar essas duas músicas antes, para ritmar mais os meus lançamentos. Mas, mesmo que lance antes, como singles, o projeto foi pensado como um todo. Na minha cabeça, vai ser um disco. E uma música influencia a outra.
Teus shows estão muito procurados por aqueles que são teus fãs e do Engenheiros há muitos anos, mas, também, por jovens. Como tu enxergas o processo de renovação do teu público?
Fico muito satisfeito, porque, quando faço uma canção sozinho, em casa, nunca imagino que aquilo possa fazer sentido para mais alguém. E descobri que isso faz sentido e faz com que tu tenhas a bênção de poder fazer disso a tua profissão, tua arte, teu ofício. Sou muito grato a isso.
O que o Humberto de hoje, aos 61 anos, ainda guarda daquele outro de 21, subindo ao palco pela primeira vez?
Cara, eu componho exatamente da mesma forma que fiz as primeiras músicas. Não do primeiro show, porque era meio teatral, eram umas piadas, mas a partir das músicas que fiz a sério mesmo. Minha cabeça de compositor é a mesma. E como performer, como músico, melhorei bastante. Não entendia muito bem como era esse ofício. Claro que estou escrevendo sobre um mundo completamente diferente, isso faz com que a minha música seja diferente.
Outro aspecto dessa arte que fiz também, que é meio produzir, montar bandas, essas coisas. Acho que fiquei mais sensível, essa é uma diferença. Mas uma coisa estranha é que, por exemplo, o Humberto de 21 anos ia falar para o de 61 muito mais do que o 61 falaria para o de 21. Ia ficar quieto ouvindo todas as certezas que ele tem para falar: "Não, tudo bem. Espera 40 anos para a gente falar de novo". Mas aí eu ia ter 101, ele ia ter 61. Ia ser a mesma merda (risos). Mas acho que amadurecer é isso: perder as certezas e saber conviver com a dúvida.
Quando a gente compõe, as pessoas têm um pouco de ilusão de que é só para expressar o que se está sentindo, mas, muitas vezes, compomos para buscar um tipo de sensação, para compensar algo
HUMBERTO GESSINGER
Nesta tua autopercebida evolução como artista, como tu escutas os teus primeiros trabalhos? É muito crítico com eles?
Do ponto de vista de compositor, não tenho essa ilusão de que alguma versão vai ser a definitiva. E não acho que as minhas músicas sejam um material clássico. Vejo as bandas covers tentando tocar igual e nem acho que mereça isso. Vejo a música como um organismo vivo, que vai se transformando e, a cada noite, ela vai ter uma performance.
E, por exemplo, se ouço os primeiros discos, o Longe Demais (das Capitais) e o Revolta (dos Dândis), a gente estava em uma gravadora e tal, mas os caras não levavam muita fé na gente, eles tinham outras bandas. Então, a maior parte dos discos botei a voz de manhã. Sabe aquela voz de quem está acordando? Então, do ponto de vista técnico, porra, que merda isso. Mas, do ponto de vista emocional, é lindo. Porra, era um menino que estava acordando em São Paulo e gravando as músicas na hora que tinha para gravar, sabe?
A mesma coisa é com a tecnologia. As pessoas, às vezes, têm medo de que o seu som fique datado. Uma das funções da arte é, além de, claro, emocionar, é marcar a passagem do tempo. As minhas letras usam muitas imagens do cotidiano. Uma letra como Segurança, as pessoas vão ler agora e tem várias coisas ali que nem existem mais. Mas adoro essa coisa de ser datada. Tu ouves a música também de um ponto de vista de algo que foi feito naquele momento histórico específico.
E como é que tu ouves música hoje em dia?
Ouço música 24 horas por dia. Agora, talvez, 23, porque ouço alguns podcasts também. Mas essa coisa da digitalização, se for pensar, é bem questionável, até do ponto de vista de como isso remunera as pessoas. A maneira como as pessoas ouvem música hoje em dia, é muito fragmentada. Por isso que a música eletrônica é uma música sem início nem fim, porque as pessoas ouvem uma fatia. Para quem é da minha geração, é o contrário. A gente pensava em música como uma introdução, cresce no primeiro refrão, no segundo, como uma história. Tem uma timeline para cada canção. Isso não existe mais. Mas, fora isso, a coisa do streaming, sou muito grato, porque ouço coisas que tenho certeza de que não teria acesso quando era moleque.
E como é o teu processo de fazer música?
A música, além do prazer que dá, com as frequências sonoras entrando no teu cérebro, tem a coisa de pensar a história, o momento histórico em que cada canção foi feita, o que viveu aquele artista naquele momento. Por isso, estou tão apaixonado por essa música que fiz com o Chico César, porque é meio uma junção de Nordeste e Sul. E nem sei se essas coisas que eu acho tão bacanas na canção vão aparecer para as pessoas que vão ouvir, mas o processo de compor foi muito legal. Às vezes, o processo é melhor que as canções.
Me lembro quando fiz Somos Quem Podemos Ser, estava em um hotel em São Paulo, e foi tão fácil fazer aquela música que disse: "Não, isso aqui já deve existir". Saía batendo nos quartos de todo mundo e tocando: “Tu já ouviste isso?”, “Não, não”, “Ah, então acho que fiz uma música”. E tem outras que demoram um tempo para fazer, como Infinita Highway. Tinha versos dela desde quando tinha 12, 13 anos. Em uma noite, acho que foi nos primeiros dias em que eu estava com o baixo do Pitz, quando ele saiu da banda e fiquei com o baixo dele, aqueles fragmentos de versos de anos atrás se transformaram em uma música.
Geralmente, as músicas que gravo mais desnudo, só violão e voz, como Terra de Gigantes, são as que pintaram inteiras, música e letra ao mesmo tempo. Gosto muito de trabalhar as canções, a carpintaria da canção. Passar um tempão decidindo se é uma letra ou outra, uma palavra ou outra.
A minha estrada é feita de curvas. Tudo que podia fazer de errado, eu fiz. Se fiz sucesso, a culpa não é minha.
HUMBERTO GESSINGER
Tu disseste que anda dedicando parte do teu tempo para podcasts. O que tu escutas?
Tem o WTF, que é o podcast do Marc Maron, um comediante da antiga. Ele tem mais ou menos a minha idade, 61. Então, ele está vivendo mais ou menos o mesmo momento de vida. Ouço muito podcast de geopolítica. Gosto de ouvir os dois lados: o que os russos falam e o que os ucranianos falam. E, para dormir, eu adoro ouvir podcasts de físicos que trabalham com física quântica, porque não entendo nada. Se tu pegares um com voz legal, pô, é tri bom (risos).
Adoro ouvir Sean Carroll. E se tem coisa em que sou ruim é ciência. Sou de humanas, mas aquilo me dá um sono esperançoso. Pego no sono achando: "Pô, que bom que tem gente no mundo que ainda não é obscurantista, que ainda acredita na ciência, que ainda acredita que as coisas podem ser melhores". E me dá um sono bom. E não consigo dormir ouvindo música. Já fiz playlists dessas músicas que falam de relaxamento, mas fico ouvindo e me desperto. Não sei se é porque é minha profissão, mas não consigo. Me deixa tenso e fico procurando as notas.
Falaste sobre ciências e obscurantismo. Como é produzir arte no meio de todas essas mudanças pelas quais o mundo está passando, como guerras e negacionismo?
Jamais imaginei que fosse possível uma regressão deste tipo no Ocidente. Coisas que a gente tinha como certas e conquistas sendo questionadas. É apavorante, mas temos que deixar o pessimismo para momentos melhores. O momento é tão ruim que é meio que uma obrigação ser otimista hoje em dia. Fiz uma das músicas inéditas desse novo disco, que vai se chamar Sem Piada Nem Textão, e ela é super otimista. Quando a gente compõe, as pessoas têm um pouco de ilusão de que é só para expressar o que se está sentindo, mas, muitas vezes, compomos para buscar um tipo de sensação, para compensar algo. Tu compor uma coisa mais leve, ajuda, nem que seja para melhorar três minutos da vida de alguém.
Voltando para os 40 anos do Engenheiros, como tu enxergas o legado e a relevância que a banda segue tendo?
A arte é exatamente para romper as barreiras de tempo e espaço. Como é que os caras curtem a tua música, com esse sotaque todo lá no outro canto do país, em um lugar que você nunca tinha ido? É porque a arte é feita para isso. E reforça muito a sensação que tenho de que as coisas não são tão racionais assim. A linha reta é o caminho mais curto entre dois pontos, mas toda reta é igual. A curva não é o caminho mais curto, mas nenhuma é igual a outra. E a minha estrada é feita de curvas. Tudo que podia fazer de errado, eu fiz. Se fiz sucesso, a culpa não é minha.
No tempo em que existia a indústria fonográfica, isso ficava mais explícito, porque os caras vinham com umas ideias que tu não aceitavas, mas, mesmo depois que a indústria acabou, várias coisas que fiz na minha carreira, não sei se aconselharia alguém a fazer. Também não acho que seja a minha função aconselhar os outros a fazerem, porque essa coisa da racionalidade, da tomada de decisão, não é bem assim a vida. A vida escolhe um monte de coisas para ti. A gente tem essa ilusão de que vai criar um futuro. Cara, a gente vai administrar o que jogarem na nossa frente.
Sou um bicho-grilo, um cara de humanas. Gosto de fazer as coisas sem fazer muita conta na ponta do lápis, porque a vida não é exata. E esse pensamento pragmático, de "Ah, o que é melhor para esse momento", acaba se infiltrando em cada acorde, em cada maneira de afinar a guitarra. Então, faço o máximo para preservar a minha imbecilidade e a minha falta de noção sobre algumas coisas.
Gosto da passagem do tempo, de tentar sacar o que tem de legal a cada tempo
HUMBERTO GESSINGER
Tu já fizeste parte de banda, de um duo com o Duca Leindecker, e agora está em carreira solo, com êxito em todos esses desafios. O que tu sentes vontade de fazer que tu ainda não fizeste? E até quando tu queres fazer?
Nunca quis fazer. Minha vida é isso. Posso não ter banda, posso não tocar mais para ninguém, mas vou estar lá, tentando afinar direito aquela guitarra. Sou meio condenado a isso. E é uma coisa que mudou muito em relação do início para agora. Quando começou, um monte de gente falava: "Pô, tu vê as pessoas predestinadas, é uma missão, é um dom”. Sempre achei meio exagerado esse papo de predestinado, missão e dom, mas passados 40 anos e vendo as curvas do meu caminho, as coisas improváveis que aconteceram, comecei a acreditar nessa coisa.
Tu sentiste, fisicamente, esses 40 anos passando?
Caraca, velho (risos)! Não é uma coisa linear, dá saltos. Eu, agora, esses tempos, senti outro salto, porque gosto muito de caminhar, faço tudo a pé em Porto Alegre e, raramente, alguém passava por mim caminhando. Ontem, estava caminhando, três pessoas passaram por mim e disse: "Caraca, estou caminhando mais devagar". Por outro lado, a minha voz está mais legal agora. Ela baixou um tom e está meio rouca. Espero que ela fique assim bastante tempo.
Mas sinto bastante a idade e, também, muitas coisas positivas dela. Gosto de ver a minha mão ter calo de tocar baixo, meu cabelo ficar branco. A gente vive um mundo ilusório, meio Peter Pan. Ainda mais a música pop, é super Peter Pan. Ninguém quer ter mais de 18, né? As pessoas com 5 anos de idade ou com 150 acham que têm 18. Gosto da passagem do tempo, de tentar sacar o que tem de legal a cada tempo.
Por exemplo, apesar de estar falando rápido, como sempre, sou bem menos ansioso hoje em dia. E sou mais generoso comigo mesmo também. Estaria bem mais tenso com a estreia de um show desse tipo nos anos 1980. Agora, estou tranquilo. Sei que nenhum fotograma vai definir o filme. O filme mostra várias imagens se revezando. Isso é uma sensação boa que o tempo dá. E o próprio lance da finitude também é uma coisa que não me assusta muito. Não sou um hedonista.
Não quero alimentar essa loucura das pessoas de voltar aos anos 1980. Tenho o maior prazer de estar presente no inconsciente coletivo de um monte de gente
HUMBERTO GESSINGER
Curioso dizer que é menos ansioso agora, bem no meio da, talvez, geração mais ansiosa de todos os tempos.
Mais ansiosa. Tive sorte de já estar mais ou menos em um lugar meio definido. Às vezes, tenho que me controlar com essa coisa de rede social. Não leio nada porque tenho uma autoestima muito baixa. Posso ler duas mil pessoas me elogiando, mas se uma não me elogia, fico meio mal. Mas me dou bem com mistério e com não saber das coisas. E dizem: "Mas tu consegues?". Não só consigo, como adoro. E não é falta de respeito.
Falando em fazer música, como é que tu vens se adaptando aos novos modelos de produção fonográfica? A gente vê artistas, atualmente, apostando em singles, que se tornam a música da semana. Depois, ela some.
Por mais que queira, no meu inconsciente, o modo de produção musical vai ser sempre um disco. E o que é um disco? São 40 minutos de músicas que, nos melhores, têm uma coisa a ver com a outra. Quer dizer, não é uma seleção aleatória. E isso não é um número mágico, é porque fazia mais sentido economicamente gravar 40 minutos para gastar aquela quantidade de petróleo em um disco. Virou um formato com o qual me criei como ouvinte. Então, sempre penso como um disco, em como isso vai ser lançado. Sei que, hoje em dia, ninguém tem 40 minutos da sua vida para dar. Todo mundo está muito pragmático. No meu inconsciente, no meu coração, o módulo de produção musical ainda são aqueles 40 minutos, aquela compilação de canções que, às vezes, tem alguma coisa ligando todas. Continuo fazendo desse jeito.
Conheço muita gente que se jogou de cabeça no Kindle, eu inclusive, e depois voltou ao livro. Parece que há vários tempos sobrevivendo juntos. E a tecnologia facilita isso. Por exemplo, se a gente estivesse falando alguns anos atrás, o menino não ia ter acesso ao Longe Demais das Capitais, que é um disco de 1986. As lojas não teriam mais eles, o disco do pai dele já estaria completamente arranhado. E esses discos estão todos vivos no streaming. Então, tento manter as portas abertas, mas não penso em me adaptar à tecnologia. Tu não és obrigado a fazer uma versão para o TikTok. Tu podes dizer não para algumas coisas que a tecnologia te oferece. Um cara como eu, que nasceu em 1963, sempre vai chegar com cara de tiozão a essas novidades. E graças a Deus. Isso significa que vivi esse tempo todo. É uma ilusão essa coisa da eterna juventude. Ninguém tem a obrigação de se atualizar.
Em uma entrevista recente tua, falaste que já nasceu com 60 anos. Então, hoje tu terias 121. Como tu enxergas essas tecnologias novas entrando para fazer arte, tipo inteligência artificial fazendo música?
Tem vários tipos de utilização. Uma que pode ser bem positiva e uma que é puramente comercial. Pela primeira vez na história, com o fim da indústria fonográfica, quem teve sorte de ter um volume de trabalho grande, entrar na memória afetiva das pessoas, se esses caras quisessem, continuariam tocando até os 200 anos. O limite da vida artística de um músico vai ser o quanto ele puder caminhar. Antigamente, um cara com 50 anos parecia um velho. E isso pode ser muito lindo porque, pela primeira vez, a gente pode também ter na música pop pontos de vista que não sejam de alguém de 20 anos.
O que fico triste é que vejo que essas ferramentas (como a IA) estão concentrando o dinheiro na mão de poucas pessoas e que não estão vinculadas à arte. Que legal que um Beatle, o Paul McCartney, é milionário. Graças a Deus que ele é milionário. Olha o que ele deu para a gente. E com essa coisa da propriedade intelectual não valer mais nada, isso vai rareando e o dinheiro vai concentrando para o cara que sabe fazer o algoritmo. E isso é uma coisa ruim, pior do que a ferramenta em si. Esse é o meu medo: o menosprezo pela criação intelectual, porque aí só vai valer as coisas físicas, minério, petróleo. E aí é uma bosta, porque aí os caras mais pragmáticos vão tomar conta do mundo.
O Humberto de hoje consegue ter a mesma emoção ao ouvir música como aquele Humberto da adolescência, que se apaixonou pela arte? Ouviste algo recentemente que mexeu contigo a ponto de pensar: "Isso aqui mudou a minha vida"?
Continuo me emocionando bastante, mas não da mesma forma. Sou uma árvore que deu muitos frutos, que mudou a característica vegetal. Quando ouvi pela primeira vez Os Incríveis tocando Era um Garoto que Como Eu (Amava os Beatles e os Rolling Stones) ou José Mendes tocando o Picaço Velho, que são duas músicas muito parecidas, porque são uma pequena ópera em três minutos, com a letra não se repetindo, aquilo mudou a minha vida. Este tipo de ingenuidade não tem mais, então seria falso falar que acordo todo dia como se tivesse seis anos. Não tenho mais. Mas tu começas a descobrir outros prazeres que não poderia ter com seis anos. Eu não tenho mais tanta vida para ser mudada, do ponto de vista matemático. É jogador júnior e veterano. Meu time ganhou bons campeonatos com jogador veterano. Mas o júnior sempre é bom, dá aquela corridinha, vai e baixa para marcar e ajudar a marcar o lateral.
Nestes teus 40 anos de carreira, qual foi aquele momento que, volta e meia, volta naquela lembrança intrusiva?
A gente tinha recém-lançado A Revolta dos Dândis e eu estava caminhando perto do hotel, em Copacabana. Era um sábado, sol para caramba. E tinha uma loja, mas estava com a cortina de ferro fechada. E saía muito pó debaixo, uma caliça, com barulho de martelo. Alguém estava fazendo uma obra em uma loja fechada. E quando caminhei na frente dessa loja, o cara estava batendo e cantando Terra de Gigantes. E, tipo assim, a gente estava dando os primeiros passos fora do Rio Grande do Sul. Eu disse: "Caralho, estou aqui em Copacabana e tem um cara, trabalhando, com esse sol, demolindo uma parede com uma marreta e cantando Terra de Gigantes. A minha música está maior que eu".
No passado, o Maltz e o Licks se encontraram e fizeram um show no Opinião e disseram que as portas estavam abertas para te receber — inclusive, para um reencontro para os 40 anos. E agora, em abril, eles farão outro show no Sgt. Peppers. Sei que o assunto é chato, mas existe alguma chance?
Não, esse assunto é bem interessante, porque muita gente se interessa por isso. Eu, com as bandas que curto, quero saber também, fico pesquisando. Mas o problema que tenho em falar sobre isso são dois. Corro muito o risco de ficar comparando com colegas, companheiros meus de várias fases. E isso não quero fazer. E o outro risco que, mais relacionado à esquizofrenia, por ficar me comparando também com o agora. São duas coisas que limitam um pouco a minha vontade de falar sobre isso.
Mas do ponto de vista humano, gosto dos dois, não tenho nada, mas não me vejo. O passado é legal, mas o passado pode ser uma gaiola também. E não quero ficar ali. Quando perguntam, isso fica meio malparado, porque não tem nenhum motivo, nenhuma briga. Foi esgotamento, e a pergunta mais certa não é "Por que acabou?", mas "Como durou tanto tempo com pessoas tão diferentes?". E essa diferença aumentou mais agora, porque é natural, cada um vai para um lado. Então, não me sinto estimulado a voltar a tocar, porque voltar não é só tocar com os caras, é voltar aos anos 1980. Adoraria se tivesse uma máquina do tempo, mas não existe (risos). Então, não quero alimentar essa loucura das pessoas de voltar aos anos 1980.
Tenho o maior prazer de estar presente no inconsciente coletivo de um monte de gente. E uma diferença grande também é a cabeça do compositor da cabeça do músico. Como compositor, tu ficas buscando novos caminhos para as novas canções e tu sabes que nenhum momento é definitivo. E o músico é meio diferente, fica: "Ah, mas aquele solo não sei o quê". E essa fixação nesses pequenos detalhes é uma coisa que não me agrada. Gosto mais de ver a coisa do ponto de vista do compositor, que vê as coisas completamente diferentes do músico. Talvez, essa seja a diferença entre nós. Então, não vejo no meu futuro, pelo menos como as coisas são postas hoje em dia, voltar para "Ah, vamos tocar só os sucessos". Gastei muito da minha energia para fugir dessa armadilha de "só os sucessos", velho.
Não quero ficar dourando a minha pílula, mas comprei muita briga na indústria fonográfica e não ia ser agora, que não existe mais nada disso, que ia voltar para essa coisa de "Ah, então vamos lá, vou cortar o meu cabelo igual ao que era", porque não é mais igual. Mas, é muito estranha essa energia dos caras de estar sem fazer nada. É muito bom que eles estejam tocando, estejam na ativa aí, e façam o caminho deles. Mas, assim, bah, não me convidem para ficar preso no passado, não posso me dar esse luxo de não viver o hoje.
Não vou deixar de ser gremista se o time estiver mal ou estiver bem. O que a gente precisa é saber que tem umas pintas se esforçando ali
HUMBERTO GESSINGER
E a vida pessoal, como está?
Graças a Deus, bem desinteressante, monótona (risos). Adoro a monotonia, adoro leis. Cara, adoro uma placa que diz que é proibido dobrar à esquerda, porque, se não tivesse essa placa dizendo que é proibido, o trânsito não andaria. Tem um pessoal libertário aí que não quer. Cara, vamos fazer leis para a gente viver mais civilizadamente. E a mesma coisa na vida pessoal. Sou casado há 40 anos. Às vezes, a gente briga. Às vezes, não briga. A gente fica meio de mãos dadas, mas, às vezes, cada um corre para um lado. É deliciosamente monótona.
A minha filha está morando na Suécia, casou com um sueco. Uma vez por ano, passo um mês lá. Vou agora e é lá que vou gravar também essa música que fiz com o Chico César. Tem um estúdio maravilhoso que descobri lá. Então, é o tipo de vida que não vai atrair ninguém nas redes sociais. Sem fofocas, mas com paz e com pessoas que te respeitam e que tu nas quais tu podes confiar.
E a última: qual a tua expectativa para o ano de 2025 do Grêmio?
Caraca, velho, eu espero que comece, porque não começou ainda (risos). Mas, cara, sabe o que estava falando com um amigo meu? Do ponto de vista de entretenimento, o ano passado foi um baita ano. Claro, estou falando isso porque a gente não caiu. Mas, assim, me lembro que no fim assistia uns quatro jogos por rodada. Tinha que ver o Grêmio, o Criciúma, o Juventude. Não vou deixar de ser gremista se o time estiver mal ou estiver bem. O que a gente precisa é saber que tem umas pintas se esforçando ali. Claro, todo mundo é profissional, mas que pelo menos eles saibam que nós, torcedores, não somos profissionais. Faço votos que eles pensem no futuro e assinem com quem paga mais, mas assim, bah, não pensem que a gente é profissional. Nos deem umas alegrias de vez em quando (risos).