Por Everton Cardoso
Jornalista e crítico
A montagem da ópera La Bohème, de Giacomo Puccini, apresentada no Theatro São Pedro no último fim de semana, com récitas no sábado (10) e no domingo (11), trouxe à cena em Porto Alegre uma das obras mais encenadas da história do gênero lírico cênico. Mais uma vez a escolha do título é um acerto da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, a Ospa, conjunto que esteve muito bem sob direção musical e regência de Evandro Matté. A casa lotada, mais uma vez, prova que a cidade está ávida por espetáculos desse tipo.
É óbvio que a obra do compositor italiano, que foi apresentada por primeira vez em Turim, em 1896, tem qualidades musicais indiscutíveis, além de conter o melhor das características do gênero, sobretudo a capacidade de nos fazer refletir sobre nossos conflitos, contradições, paixões, dramas e todos os sentimentos que nos constituem enquanto humanos. Para além disso, essa opção segue colaborando para nossa formação como um público local engajado num circuito de produção operística, como já apontei em novembro do ano passado, quando da montagem de Carmen, de Georges Bizet. Agora falta-nos apenas Aida, de Giuseppe Verdi, para termos o “ABC” básico da ópera levado a cena em Porto Alegre nesta atual fase – há registros de uma grande montagem apresentada em abril de 1966 no Auditório Araújo Vianna numa produção que envolveu a Ospa e teve direção cênica e regência do maestro Pablo Komblós.
O libreto de La Bohème é de autoria de Luigi Illica e Giuseppe Giacosa e foi baseado no romance Cenas da Vida Boêmia, publicado em 1851 por Henri Murger. A história em quatro atos se desenrola em torno da pobreza e dos amores de um grupo de artistas em Paris. A trama começa quando Rodolfo, um poeta, e seu grupo de amigos boêmios estão reunidos em seu apartamento. Tal é a precariedade da vida que levam que decidem queimar um manuscrito do protagonista para se aquecer enquanto fazem comentários irônicos e depreciativos com relação ao trabalho literário. Quando todos saem para as festas natalinas pelas ruas, Rodolfo, que ficou para trás, ouve uma batida à porta: é Mimì, uma costureira que vive como eles, pedindo ajuda para acender uma vela. Eles se apaixonam quando Rodolfo a reanima depois de um mal estar decorrente de um acesso de tosse.
Se o canto dessa cena proposta por Puccini e que encerra o primeiro ato é de uma sensibilidade singular, as interpretações da soprano Gabriella Pace como Mìmi e do tenor Lazlo Bonilla como Rodolfo não diferem. Ele, ainda que em recuperação de um problema de saúde, como anunciado, se apresentou bem; ela, por sua vez, cantou lindamente tanto no dueto quanto, depois, na ária Si Mi Chiamano Mimì. Juntos, mostraram entrosamento e deram à cena o romantismo e o arrebatamento sutil que lhe é característico. Ao final do ato, quando se retiram cantando Amor! Amor!, a iluminação em raios projetados entre os painéis do cenário acentuou essa sensação.
Nos atos seguintes, o romance segue, mas pobreza, ciúmes e doença vão se colocando como desafios. A segunda parte se desenrola diante do Caffè Momus e dela participam 30 integrantes do Coro Sinfônico da Ospa e 12 dos Coros Jovem e Infantojuvenil da Escola da Ospa. Com o palco repleto, representaram bem o contexto de festas de fim de ano nas ruas da capital francesa. Colorida e divertida foi a atuação do tenor Adolfo Amaral como Parpignol, um vendedor de balões que diverte as crianças enquanto elas cantam entoando seu nome. Os demais cantores do elenco principal também estiveram bem nesta e nas demais cenas – o barítono Marcelo Ferreira, o baixo-barítono Daniel Germano e o também baixo-barítono Guilherme Roman como os amigos artistas de Rodolfo e a soprano Elisa Lopes, que dá vida a Musetta, amiga do grupo e namorada de um deles.
No terceiro ato, Lazlo Bonilla apresentou muito bem as reflexões do atormentado Rodolfo. Enciumado, ele tem dúvidas com relação aos sentimentos de sua amada Mimì. Quem nunca se viu nesse lugar de insegurança tanto em relacionamentos quanto em outras dimensões da vida? Todos somos, em alguma medida e em algum momento, esse personagem. O medo da perda pode nos motivar, mas ao mesmo tempo pode nos bloquear, nos levar ao boicote ao nos anteciparmos para lidar com a projeção de desfechos que nos causam medo de sofrer – e, assim, nos fazem sofrer pelo que sequer sabemos se vamos viver. Não à toa o maior sucesso do cinema neste ano até agora é o filme de animação Divertida Mente 2, que trata justamente de como a ansiedade opera e toma conta de nós, cegando-nos para sensações, sentimentos e memórias.
É possível para nós, humanos, pensar em qualquer movimento em nossas vidas em que não haja risco? Essa talvez seja uma das maiores ilusões com as quais convivemos e que nossos tempos vêm tornando ainda mais difíceis com as dinâmicas das redes digitais com suas curtidas, cancelamentos e dificuldades de convivência com a diferença. A transcendência dessa cena está em sua conexão com a cena final do ato seguinte, quando Mimì, já debilitada pela tuberculose, morre justamente no momento em que Rodolfo consegue lidar melhor com seus medos. A ópera se encerra em um momento de grande comoção, e a escolha por uma montagem cênica com figurino e ambiências que remetem ao contemporâneo nos aproxima ainda mais desse drama que está em nós.
O cenário dessa produção, cuja direção e concepção é de Flávio Leite, merece destaque. Com cenografia de Yara Balboni, destacou a obra de Marcelo Pax, ou Celopax, como o vemos identificado em murais e outras obras espalhadas por Porto Alegre. O apartamento dos quatro artistas, usado no primeiro e no quarto atos, tinha como paredes dois painéis paralelos em tom bege acinzentado com desenhos dos monstros arredondados, de olhos alongados e dentes salientes em bocas abertas característicos da obra do artista de rua. No segundo, o Caffè Momus, indicado por um letreiro em neon rosa, está situado entre um conjunto de cinco painéis de diferentes dimensões e menos ordenados também com desenhos semelhantes aos anteriores. Já uma única parede em posição diagonal no palco serviu de ambientação de uma rua no terceiro ato e continha um mural com uma dezena de monstros, desta vez coloridos.
Realçar o trabalho do artista grafiteiro nos aproximou de uma estética conhecida na cidade e cuja presença no interior do São Pedro ao mesmo tempo nos transporta para a crueza da rua e rompe as fronteiras entre dentro e fora - tanto num sentido mais objetivo do palco quanto num plano mais simbólico, de uma arte que está inserida em um circuito mais eruditizado e restrito e a que está à margem. E Celopax é apenas um desses artistas “externos”! Quantos mais haverá em Porto Alegre? Quantas possibilidades mais pode haver de colaboração? Como venho defendendo, ópera é o espetáculo de encontros. Quem sabe futuras montagens possam ser oportunidades para descobrirmos sempre mais artistas visuais e formas de arte.
Essa versão de La Bohème que assistimos evidencia o que venho destacando nos últimos anos, sobretudo a partir da retomada das montagens cênicas anuais pela Ospa em agosto de 2016 com Don Pasquale, de Gaetano Donizetti. Acompanhar o que se desenrolou a partir de então vem sendo uma sucessão de boas notícias: vimos a Ospa consolidar a política de apresentar uma montagem por ano; testemunhamos a criação da Companhia de Ópera do RS e a apresentação de diversos espetáculos pela cooperativa de cantores líricos; celebramos o estabelecimento do Ópera Estúdio como espaço de formação musical e cênica; e vemos surgir uma diversidade de projetos dedicados a montagens do gênero – para além das iniciativas da Orquestra e da Companhia, um bom exemplo é o trabalho desenvolvido na Terça Lírica do Memorial do Judiciário do RS. Nesse sentido, a retomada de uma temporada após as recentes enchentes já seria por si só um motivo de alegria. Com uma boa posta em cena como a que vimos, melhor ainda! Agora, aguardamos ansiosamente a volta das produções da Companhia de Ópera do RS que haviam sido previstas para o primeiro semestre deste ano.