Não é de hoje que Porto Alegre é uma capital de samba. Embora, aqui, a cena do gênero não seja tão reconhecida quanto em localidades como o Rio de Janeiro, a capital gaúcha abriga um dos públicos com o samba no pé mais afiado do país. Por isso que nunca foi raro encontrar vastas opções para curtir uma roda de samba na cidade.
A novidade que se vê agora, porém, é o surgimento de eventos deste tipo em bairros pouco tradicionais para o gênero musical, atingindo assim novos perfis de pessoas. O samba está pop.
A constatação foi feita pela reportagem de GZH — que percorreu diferentes rodas de samba da Capital, desde redutos tradicionais como o Boteko do Caninha e o Além do Samba, até rodas que têm emergido em bairros como o Bom Fim e o Quarto Distrito (confira a reportagem completa aqui) — e é confirmada por músicos e pesquisadores ligados ao meio. Segundo eles, algumas problemáticas acompanham esse processo.
A primeira delas passa pelo repertório, aponta o músico André Matias, sambista e um dos fundadores do projeto Estude, Trabalhe e Sambe — roda de samba itinerante e gratuita que ocorre toda quarta-feira. Conforme o músico, o samba que toca em uma roda no Moinhos de Vento, por exemplo, é diferente daquele que será tocado em um espaço tradicional como o Caninha. Essa diferenciação, ele explica, é planejada a partir de uma visão de negócio, uma vez que os eventos fora do circuito "raiz" do samba em Porto Alegre precisam atender a um novo público. Um público que, em geral, é de classe média, universitário, branco e consumidor do gênero musical há pouco tempo.
— Eu tocava muito nesses rolês que estão surgindo agora, em regiões tipo o Moinhos de Vento, mas tive de parar de tocar em alguns lugares porque os contratantes não queriam o estilo de samba que faço. Quem toca nesses rolês de classe alta toca aquilo que está na moda, que está nas rádios. E a gente, que toca um samba mais racializado, acaba não tendo espaço — explica Matias.
Apesar disso, o músico não vê com maus olhos a ascensão de novos eventos de samba em Porto Alegre. Para ele, que foi criado na região da Ilhota, histórico território negro da cidade e berço de nomes como Lupicínio Rodrigues, tal cenário “é resultado do bom trabalho que está sendo feito” e, de alguma forma, beneficia a cena sambista:
— No fim das contas, o pessoal gosta dos negros tocando para eles, mas o público é branco. Mas isso ajuda o samba e gera dinheiro para quem precisa trabalhar.
Para a cantora e compositora Pâmela Amaro, o ponto crucial da discussão é o respeito à origem negra do samba e a consciência de qual é o contexto em que ele está inserido. Qualquer lugar pode abrigar uma roda, Pâmela defende, mas precisa entender que, ao mesmo tempo em que uma festa é realizada sem maiores problemas em um bairro de classe média, outros espaços sambistas enfrentam o risco de perder seus territórios.
— O samba tem endereço e origem. Tem RG e tem CPF, porque é mais do que um gênero musical. É uma filosofia, uma cultura. Foi o que manteve a população negra viva. O samba é uma coisa muito séria. Então, qualquer roda tem de surgir com responsabilidade — diz Pâmela. — A questão é se pretos e pretas cantando nos lugares tradicionais também terão espaço. Teremos estrutura, dinheiro? As escolas de samba conseguirão se sustentar ou vão sempre receber carta com ameaça de despejo?
Nina Fola, musicista e doutoranda em Sociologia pela UFRGS, chama atenção para uma histórica marginalização do samba na cidade, que, segundo ela, vem desde a mudança do Carnaval para a região do Porto Seco. O movimento distanciou a manifestação cultural das regiões centrais — as mesmas que agora voltam a abraçar o samba.
— Pode até haver eventos de samba, mas Bom Fim, Cidade Baixa e Centro Histórico, por exemplo, não admitem escolas de samba nos seus territórios. É como dizer: “Gostamos da cultura popular, mas não queremos o povo que a carrega”. Isso, para mim, é racismo. É o mesmo que tu teres uma cozinheira maravilhosa, que faz o teu belo jantar, mas que tu não chamas para sentar à mesa contigo. Tu gostas do que ela pode te oferecer, mas ela em si não é desejável — analisa Nina.
A pesquisadora aponta que o melhor caminho seria uma união de forças. Em sua visão, o público branco e de classe média que tornou o samba mais pop pode usar seus privilégios quando o movimento cultural precisar travar suas lutas.
— A gente tem em Porto Alegre espaços como o Odomodê, um grupo antiquíssimo situado ali na Avenida Ipiranga, e que precisa fazer uma festa para arrumar um conserto de luz, cara. Essa é a realidade de um espaço que existe há mais de 40 anos e não é amparado por uma política pública. Então, o que cabe é unir essas forças por uma articulação. Enquanto a gente não tiver oportunidade de discutir a divisão dos privilégios, a gente vai continuar na mesma — conclui Nina Fola.