Ele fez de novo. Morrissey acaba de lançar um excelente disco (ainda se pode chamar álbum de disco?). I am not a Dog on a Chain chegou às plataformas de streaming dia 20 de março e é a 13ª obra de sua carreira solo. Moz, como também é conhecido, continua dosando sua tradicional picardia nos versos, defendendo o direito dos animais, criticando a mídia e compondo letras como poucos.
Logo na primeira faixa, Jim Jim Falls, a forte batida eletrônica surpreende e o refrão mostra que o seu sarcasmo está em plena forma: "Se você vai cantar, cante/ só não fale a respeito/. Se você vai pular, pule/ Se você vai se matar/ então pelo amor de Deus/ apenas se mate".
A crítica a quem maltrata animais vem na sequência com Love is on It´s Way Out. Desta vez, a mira é apontada aos caçadores: "Você viu os tristes ricos caçando/ atirando em elefantes e leões/ O amor está cansado e está de partida".
Bobby, Don´t You Think They Know é a próxima. Algo raro nos discos de Morrissey, traz um lindo dueto com uma das lendas da Motown Thelma Houston. O contraste das vozes marcantes é perfeito. São quase seis minutos de música, o oposto das faixas anteriores. Depois, destaque para as baladas What Kind of People Live in These Houses e Knockabout World. Mais ao final, as canções empolgam um pouco menos.
Mas precisamos falar sobre a música que dá título ao álbum. Nela, Morrissey abre a artilharia: "Eu não sou um cão preso na coleira/ eu uso meu próprio cérebro/ Eu não leio jornais/ eles são criadores de problemas/ Escute o que não está sendo divulgado/ e você encontrará a verdade/ (...) Não vejo razão para ser legal".
A letra reflete a guerra de Morrissey com parte da imprensa e dos fãs nos últimos anos, especialmente depois de sua guinada política à extrema-direita. O artista e seu staff já entraram em batalhas públicas com vários jornais. O jornalista Joshua Surtees, fã declarado do cantor e funcionário do The Guardian, chegou a publicar artigo em que se mostrava cansado de defender o artista de acusações de racismo e xenofobia. O texto veio logo depois de Morrissey se apresentar usando um button do partido For Britain no programa de TV de Jimmy Fallon, nos Estados Unidos.
A sigla defende, entre outras coisas, a cultura britânica acima de tudo, e se coloca abertamente contrária ao islamismo e sua propagação na Europa por meio dos imigrantes - por isso, costuma ser acusado de racismo. O manager de Morrissey elogiou a "paixão" do texto, mas negou, com veemência, que o cantor seja racista. Além disso, convidou Surtess a conviver com o artista durante parte da turnê de 2019 para conhecê-lo "de verdade", desde que abandonasse o jornal para o qual trabalhava. O que, claro, não aconteceu. Em seu artigo no Guardian, Surtees apontou: "Atualmente, algumas pessoas acham que podem apenas dizer 'não sou racista', enquanto dizem e tomam atitudes racistas".
Morrissey também minimizou, em entrevista publicada no jornal alemão Der Spiegel e reproduzida na BBC, os atos de Harvey Weinstein e Kevin Spacey, estrelas de Hollywood acusadas de abuso sexual (Weinstein, inclusive, foi condenado, em 2020, a 23 anos de prisão). Morrissey começou dizendo que "estupro é algo nojento e qualquer ataque físico é repugnante". Mas afirmou que "quando você está na cama com alguém, tem de ter noção de onde isso pode te levar". Após a polêmica, o cantor declarou que jamais daria entrevista a um jornal impresso. No ano seguinte, alguns fãs marcaram uma festa de protesto no mesmo dia que um show de Morrissey deveria ocorrer em Manchester.
Ao mesmo tempo, Moz acaba de gravar uma linda música com uma lenda da Motown e publicar no Facebook uma carta de apoio de uma galeria de arte dos Emirados Árabes Unidos, que lhe dedicou uma exposição por considerá-lo "amigo dos muçulmanos".
Ele também é bastante admirado na luta pelo direito dos animais. É vegano desde criança e defende o fim do consumo de carne há décadas. A música Meat is Murder ("Carne é Assassinato", em inglês), por exemplo, é de 1985. Compreensível, portanto, que ele já tenha interrompido um show por alegar que estava sentindo "cheiro de morte" vindo da área de alimentação, que grelhava hambúrguer.
Moz também é crítico feroz da família real britânica. Chamá-lo de isentão, portanto, ninguém pode. Ele sempre fez questão de se posicionar. Porém, em determinado ponto, tomou uma curva inesperada. Percorrendo, assim, um caminho que o distancia de boa parte dos fãs, ainda que seja quase impossível ficar alheio à sua obra artística. "Cancelar" seu álbum mais recente seria um golpe baixo. Minha irmã mais velha, assim que recomendei I Am Not a Dog on a Chain, respondeu:
- Pois é, o Morrissey artista é muito melhor do que a pessoa Steven Patrick Morrissey.
Não tive como discordar.