Por que criar um festival de música negra, pensado em forma de manifesto contra a invisibilidade da luta e da história do povo negro no Rio Grande do Sul? Por que manifestar em protesto e não festejar junto com o tradicionalismo, que está acampado em comunhão com seus piquetes celebrando a Semana Farroupilha?
Bom, façamos as contas: em um evento que celebra a tradição e a memória do povo gaúcho, com mais de 300 piquetes, há apenas dois que lutam pela preservação das tradições dos negros gaúchos - o piquete Mocambo e o Piquete Lanceiros Negros Contemporâneos. Temos que concordar que há um certo desequilíbrio, não é mesmo? As dores da escravidão expostas, sem propósito ou questionamento, na representação de uma senzala que pretendia "homenagear" a história do povo negro no Estado não são uma memória honrosa das mortes na Guerra dos Farrapos nem uma contribuição para a preservação da história do negro no Rio Grande do Sul. É a nossa dor exposta para "pão e circo".
O Festival Porongos de Música Preta Independente vai na contramão desse tipo de homenagem. O nome do festival remete diretamente ao Massacre de Porongos: em 1844, os Lanceiros Negros, desarmados, foram atacados "de surpresa" e dizimados pelas tropas imperiais, abrindo espaço para a tão comemorada Paz de Ponche Verde, no ano seguinte.
O festival exibe boas escolhas musicais. Vozes resistentes, que falam verdades, que cantam sobre e contra os preconceitos. Um evento que já nasce resistente na expressão forte e decidida de Negra Jaque, MC premiada e reconhecida aqui no Estado, que canta em um dos seus melhores refrões: "Solte o seu cabelo crespo".
Saskia, cantora de 21 anos com voz madura, se expressa lindamente, de forma criativa e autoral, também no audiovisual. Não carrega suas letras com protestos explícitos, como o rap de Negra Jaque, mas tem verdade quando canta sentimentos, numa pegada eletrônica, com guitarra e teclado orgânicos e que consegue se retirar do lugar previamente estabelecido para as cantoras negras.
O festival apresenta ainda o groove do grupo Ivy King. Formado por Guilherme Leon (baixo), Guilherme Caetano (guitarra), André Nectoux (bateria) e Sara Nina (vocalista). Grupo com ideias autorais que nos representa muito nesses momentos decisivos em que queremos e precisamos falar. A noite prossegue com a cantora Camila Toledo, que mostra seu novo projeto, fora do território dos seus trabalhos com jazz e funk. Acompanhada da guitarra de Gabi Lery e da percussão de Diih Neques, usa a voz potente para homenagear e reverenciar outras vozes negras da música brasileira, como Sandra de Sá e Elza Soares.
Percebeu a oportunidade? Se o nosso Estado ainda sofre com um tradicionalismo que invisibiliza a negritude, também nos dá a chance de refletir e mudar e da melhor forma: através da arte. Na mesma terça-feira, 17 de setembro, em que gostaríamos de "desver" a representação infeliz de senzala no Acampamento Farroupilha, o palco sagrado do Theatro São Pedro recebeu, dentro da programação do 25º Porto Alegre Em Cena, o magnífico espetáculo Preto, que aborda a urgência de combatermos as violências do racismo. E hoje temos a chance de ressignificar a Semana Farroupilha no Festival Porongos de Música Preta Independente. A chance de ter música boa e belas vozes que nos carregam para a leveza do entretenimento e, ao mesmo tempo, na direção de um mundo melhor.
Lanceiros Negros, presente.
FESTIVAL PORONGOS DE MÚSICA PRETA INDEPENDENTE
- Nesta quarta-feira (19), no Bate (Rua João Alfredo, 701).
- Abertura da casa às 23h e shows a partir de 1h.
- Ingressos na hora a R$ 30 e a R$ 25 mediante doação de alimentos (farinha de trigo, leite e açúcar), materiais escolares (lápis de cor, canetas hidrocor, cadernos pequenos, tinta guache, folhas de ofício coloridas) ou papel higiênico.
- Atrações da noite: Camila Toledo, Negra Jaque, Sara Nina / Ivy King, Saskia e discotecagem de Suelen Melo