Filha de mãe brasileira e pai panamenho, mas vivendo nos Estados Unidos há mais de 20 anos, Erika Sander tem em suas veias o multiculturalismo. Criada ouvindo músicas de diferentes cantos do globo, a cantora e compositora passeia com naturalidade por diferentes gêneros musicais em suas composições. Já escreveu salsa, merengue, rock, reggaeton, pop, sertanejo (Quero Acender Seu Fogo, de Leonardo), entre outros gêneros.
– Quando vejo as minhas músicas demo no meu iTunes, tem mais de mil. Tem muita coisa antes disso que eu já tinha escrito quando pequenininha, mas que nunca gravei. Gravadas por artistas estou chegando às 200 músicas – aponta Erika em português, com um sotaque baiano. – Sempre fui ao Brasil em todos os anos da minha vida. Passo Natal e Réveillon no país, em Salvador – relata.
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Com 42 anos, sendo 25 de carreira, Erika escreveu suas primeiras canções na adolescência:
– Comecei novinha. Estava na escola quando comecei, com 16 anos. Aos 20, já estavam gravando minhas músicas internacionalmente.
No últimos meses, Erika tem vivido os meses mais intensos de sua trajetória como compositora. Em novembro do ano passado, ela foi a primeira mulher panamenha a conquistar um Grammy Latino. A compositora foi premiada na categoria Melhor Canção Regional Mexicana, por Ataúd, interpretada pelo grupo Los Tigres del Norte. Em janeiro, foi lançada Despacito, canção feita em parceria com Luis Fonsi e Daddy Yankee. O hit alcançou o primeiro lugar da lista Hot 100 da Billboard em maio, sendo a primeira música cantada em espanhol a atingir tal marca nos Estados Unidos desde Macarena, em 1996, da dupla espanhola Los Del Río.
Erika já imaginava que poderia estar compondo um hit.
– A gente sente na pele. Não que eu ache que essa música tenha muita diferença com o que eu já tinha feito antes. Dentro da profissão de compositor, a gente já sabe mais ou menos para onde se vai porque faz isso como um trabalho. Sabemos mais ou menos como é a fórmula comercial. Mas eu não componho pensando no comercial. Escrevo pensando em conectar com a mente e os corações das pessoas.
A artista veio ao Brasil na última semana divulgar seu novo disco, Tatuajes. O álbum reúne sete canções inéditas da cantora e suas versões de Ataúd e Despacito – esta última que, na interpretação de Erika, ganhou um tom mais intimista.
– Foi como eu senti Despacito. Gravei uma versão bem minimalista, que era o que eu queria fazer nesse disco. Botar as pessoas para escutarem as letras das músicas, bebendo um vinhozinho, talvez chorar ou namorar, dependendo da canção (risos) – explica.
Em entrevista com Zero Hora por telefone, Erika falou sobre sua trajetória, o sucesso de Despacito e o machismo na indústria da música latina.
Você consegue transitar por diferentes estilo musicais como compositora, desde o reggaeton ao sertanejo. Da salsa ao merengue. Qual a origem dessa sua flexibilidade?
Eu venho de um lar multicultural. Meu pai é do Panamá, e minha mãe é brasileira. Imagina só a salada que eu tinha em casa (risos). Eles eram muito musicais. Escutávamos música do início ao fim do dia. Meu pai acorda e coloca o rádio para tocar. Nesse ambiente, eu cresci escutando muita coisa europeia, italiana, francesa e brasileira, o que inclui muito Roberto Carlos, aprendi a compor muito com ele. Além disso, tudo o que tinha a ver com a Bahia, como Gal Costa, Caetano Veloso e Maria Bethânia, além de Ivete da nova leva. Bossa nova também. Tive muita influência brasileira na minha vida. Além disso, tudo que escutava na rádio por morar no Panamá, que é uma ponte do mundo, tem gente de toda a parte do planeta. Moro nos Estados Unidos há 20 anos, também tem muito a ver com o lado americano. Mas é uma coisa que se deu muito naturalmente. Desde pequenininha, eu escutava de tudo em casa. Isso me ajudou a me desenvolver dentro da música em vários ritmos, gêneros e línguas. Não vejo a música com limites, eu a decodifico naturalmente. Acho que tem a ver com a base que a minha família me deu sem querer.
Em novembro, você foi a primeira mulher panamenha a ganhar um Grammy Latino. Como foi essa conquista?
Fui operada de apendicite cinco dias antes, você acredita? Fui assim mesmo. Meus pais são médicos e estavam comigo. Chegaram no dia seguinte que fui operada. Adrenalina era tanta que nem senti nada na hora da premiação. Em 2016, muita coisa ruim estava acontecendo com o Panamá, principalmente por conta dos Panama Papers. Para mim, era uma responsabilidade enorme mostrar para o mundo que no Panamá as coisas são feitas da forma correta, porque o panamenho é bem mais do que estavam falando. Precisava ir lá receber esse prêmio, caso ganhasse mesmo. Me arrisquei para dar uma boa notícia ao meu país e também para as mulheres, pois não é normal que uma compositora consiga ganhar nesse gênero (regional mexicano), que é completamente masculino. Valeu a pena.
Como é o mercado da música latina para uma compositora?
Sempre foi difícil para mim. Eu acho que o mundo latino é um pouquinho mais, não queria dizer essa palavra machista, mas é um pouco mais baseado nos homens. No mercado da música latina, são 20 homens e uma mulher. Isso como cantores. Agora imagina como compositora ou produtora. Não é normal dizer "minha técnica de som", "minha produtora" ou "minha compositora". Então a gente tem que quebrar os parâmetros onde for possível e mostrar que a gente é capaz e dar resultados, e é nisso que a minha carreira está baseada. Tem sido um caminho longo que tenho trilhado com muito esforço, muita dedicação e compromisso.
Despacito, que você escreveu em parceria com Luis Fonsi, estourou no mundo inteiro, ocupando o topo das paradas de rádio em diversos países. Como foi o processo de composição deste hit?
Tenho uma amizade de mais de 10 anos com o Fonsi. Já escrevemos juntos em discos anteriores e já tivemos música tocando nas rádios. Nós estávamos batendo um papo, e ele me contou que estava começando a escrever para o disco novo e me perguntou se eu topava participar, o que aceitei. Fui na casa dele e começamos a trabalhar. Ele me trouxe à mesa o título de Despacito. Ele já tinha a primeira linha do refrão e queria fazer uma coisa que fosse "Despacito, vamos a hacerlo en una playa en Puerto Rico" – foi a primeira ideia que ele trouxe. A partir daí, reformamos um pouco a melodia do refrão que ele estava propondo. Começamos a trabalhar a melodia completa e fazer a letra com sentido e propósito.
Em entrevistas, Fonsi costuma mencionar que você contribuiu bastante dando um toque "suave" à música.
O que ele fala tem a ver que, como sou mulher, estou tomando conta das mulheres nessa música. O mundo da música pop urbana, geralmente, pode ser agressivo para uma mulher. Muitas vezes, ela é tratada como objeto. Para mim, a mulher é uma obra de arte: é quem dá a vida, faz tanta coisa linda e positiva. Acho que a gente tem que guardar esse lugar sagrado da mulher, uma forma de falar pra gente: curtam o momento, não corram para chegar ao final, nesse mundo que agora é tudo imediato, com a tecnologia, com o sexo, com tudo. Com uma melodia contagiante e uma mensagem fácil de entender, mas sem deixar de ser poesia, é uma forma criativa de dizer que a vida também é legal quando se vai devagar.
Enquanto vocês trabalhavam em Despacito, vocês sabiam que estavam compondo um hit?
A gente sente na pele. Não que eu ache que essa música tenha muita diferença com o que eu já tinha feito antes. Dentro da profissão de compositor, a gente já sabe mais ou menos para onde se vai porque faz isso como um trabalho. Sabemos mais ou menos como é a fórmula comercial. Mas eu não componho pensando no comercial. Escrevo pensando em conectar com a mente e os corações das pessoas. Faço isso mais por vocação do que por fama e dinheiro, que vem como consequência de um trabalho bem feito. Nós sabemos o que o pessoal gosta. A estrutura, a estrofe, o pré-coro, o refrão, a gente já sabe por onde ir. Mas também sentimos na pele quando se tem algo legal, diferente, quando tem uma energia que flui rápida. Despacito teve essa magia.
E se tornou uma febre mundial.
Foi uma surpresa para todos. Isso só acontece uma vez a cada 20 ou 30 anos. Independente de quem fez a música ou produziu, dá muita alegria o fato de o mundo inteiro estar cantando e dançando em espanhol, com a canção alcançado o número um dentro dos EUA. Isso não é normal, só aconteceu três vezes. Para mim está sendo uma maravilha, porque me colocou como a única mulher compositora que já conseguiu esse número um americano com uma música em espanhol.
Como você se sente ao ver tantas versões de Despacito, como paródias e cantos de torcidas?
É emocionante, viu. Estou muito agradecida com tudo o que está acontecendo. Porque isso significa que a música conectou com o pessoal, isso é o mais importante para mim. Eu já morri de rir com paródias. Também já chorei de emoção.
Os últimos meses têm sido os mais intensos de sua trajetória. O que você pretende fazer na sequência?
Estou trabalhando em várias coisas ao mesmo tempo. Eu sou como o meu cabelo: fico ocupando muito espaço (risos). Estou divulgando o disco que acabei de lançar e abrindo mercado em outros lugares onde eu não era conhecida até o momento. Pretendo trabalhar com mais artistas pelo mundo. Eu já tinha estabelecido uma carreira no mundo hispano, mas agora estou indo mais para o lado do inglês e para o Brasil também. Tenho também a Fundación Puertas Abiertas no Panamá, que abri em 2009 para trabalhar com educação por meio da música com crianças carentes. Minha missão é essa: eu uso a música como um veículo para fazer o bem.
Algo especial reservado para o Brasil?
Queria trabalhar mais próxima do Brasil. Quero fazer essa ponte entre esses dois mercados que cresci: trabalhar os latinos no Brasil e os brasileiros na América Latina e EUA. Quero muito fazer isso como compositora. Além disso, gostaria de trabalhar mais como artista no país. Sou conhecida como cantora em outros países. Quero muito voltar ao Brasil várias vezes este ano, até fechar o ano cantando com Roberto Carlos (risos), seria o prêmio maior desses 25 anos de carreira.