Em junho de 2014 eu tive um encontro insólito com Belchior. Era um inverno rigoroso em Porto Alegre. Eu havia saído com uns amigos para beber alguma coisa. Cheguei em casa antes da meia-noite. Estava me preparando para dormir quando meu celular tocou. Era minha amiga Ediane Gheno-Piqui, com quem, na época, dividia um apartamento.
"Jef, jef, vem pra cá, o Belchior tá aqui."
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Eu, já metido num pijama e sem nenhuma intenção de sair naquela noite fria, achei que minha amiga estivesse fazendo uma pegadinha, arranjando um motivo para me tirar de casa. Desconfiei, mas ela insistiu.
"Jef, é sério, ele tá aqui no 'Casarinho'. Mas não conta pra mais ninguém, ele pediu."
Ainda desconfiado, troquei de roupa, enfrentei o frio e as ruas desertas do Centro. Saí da André da Rocha e entrei na Fernando Machado. Caminhei alguns metros e toquei na campainha de um espaço chamado "Casarinho". Era uma espécie de casa de estudantes que dividiam o espaço, e lá promoviam saraus e outras atividades culturais.
Quando abriram a porta, uma moça de dreads e piercing abriu a porta:
"Tu deve ser o amigo da Ediane, né?"
Eu disse que sim. E, conforme ia subindo as escadas, comecei a escutar uma cantoria. Logo reconheci a música: "Eu sou apenas um rapaz..."
Ao chegar na sala, a primeira pessoa que vi foi o Belchior, sentado no sofá, segurando uma taça de vinho. Eu até achei que fosse um sósia ou uma alucinação minha, mas não era. Era mesmo o Belchior. Ao lado dele, a Edna, a companheira dele. Os dois levantaram e minha amiga me apresentou. "Este aqui é o Jeferson Tenório, meu amigo que falei pra vocês."
Belchior e Edna sorriram pra mim e depois apertaram minha mão. Eu meio sem jeito me posicionei num canto e fiquei ali observando o Belchior. Enquanto isso, as pessoas cantavam e ele sorria. Belchior parecia feliz. Quando a música parou, Edna tomou a palavra. Pediu um brinde à poesia. E todos nós brindamos, mesmo eu, que ainda não tinha copo nenhum na mão, brindei. Em seguida, a Edna começou a falar sobre a guerra Farroupilha, sobre a história dos Lanceiros Negros. Era uma mulher extremamente inteligente e hábil com as palavras. Contou também histórias sobre o Mario Quintana, comentou suas poesias e disse alguns versos dele. Belchior acrescentou que era um grande poeta.
Em dado momento, fomos todos para cozinha porque a sopa estava pronta. Belchior falava pouco. Observava bastante, era muito gentil nos gestos. Ninguém perguntava nada a ele. Em algum momento pediu apenas que não disséssemos à imprensa que ele estava em Porto Alegre e que havia ficado chateado e incomodado com uma matéria no Fantástico sobre o seu "sumiço".
"As pessoas não sabem o que dizem" foi o que ele comentou sobre a matéria. Depois da janta, fomos para uma parte aberta da casa, apesar do frio, o ar era agradável. Edna continuou falando sobre história e política. Era sempre muito precisa e incisiva nas palavras e nas fontes que citava.
Depois de algum tempo, todos entraram porque o frio estava incomodando. Mas Belchior ficou lá fora, olhando para o céu. Eu também permaneci e foi a única vez em que ficamos sozinhos àquela noite.
Naqueles breves minutos ele me perguntou o que eu fazia. Tive vergonha de dizer que era escritor e disse apenas que era professor de literatura. Belchior sorriu e perguntou qual era a idade dos meus alunos e onde eu dava aulas. Aí emendei a falar do sistema educacional, da literatura, da política, do frio de Porto Alegre, na verdade eu não lembro se a ordem foi essa porque eu estava nervoso e sabia que era um momento único. Minutos depois Edna veio chamá-lo para dentro. Entramos, e a conversa mesclada com as cantorias continuou. O vinho não era dos melhores, mas depois da terceira taça, já nem se notava isso.
Belchior não cantou aquela noite. Apenas nos escutava cantar. Aquilo o agradava. Os olhares entre Edna e Belchior eram ternos e delicados, cada vez que cantávamos uma música. Naquela noite, ninguém perguntou nada a ele sobre a vinda para o sul, sobre não querer fazer shows. Acho que, mesmo que quiséssemos, não nos demos esse direito.
Eu precisava acordar cedo para trabalhar, por isso, às 3h da manhã, disse que ia embora. Ao me despedir, Belchior perguntou onde eu morava, eu disse que era perto dali. Minha amiga disse que tinha em casa uma coleção de vinis. Belchior sorriu e em seguida falou que poderíamos tomar uma sopa, um vinho e escutar os vinis e que ele e Edna gostariam de conhecer nossa casa. "Claro que sim", respondemos. E eles disseram que poderia ser nos próximos dias. E nós os abraçamos e fomos embora.
E eu e Ediane voltamos para casa pensado no que ele tinha dito pra gente e nos perguntando se era sério mesmo que o Belchior queria ir a nossa casa tomar vinho e escutar vinis.
Acontece que Belchior não foi a nossa casa. Ele e Edna não ficaram por muito tempo no Casarinho. Dias depois, soube que eles haviam ido para algum lugar no interior do Rio Grande do Sul.
Mas a melhor lembrança daquela noite foi a imagem do Belchior tranquilo e feliz, segurando uma taça de vinho, sentado entre estudantes que entoavam suas músicas.
* Jeferson Tenório é mestre em literatura pela UFRGS, escritor e autor do romance O Beijo na Parede (2013).