Por Paulo Rosa
Autor de “Rotas Psicanalíticas” (1990) e “Andar Térreo” (2019)
A mirada campeira do Pampa se presta para turnos da madrugada. É nessa quietude grata das quatro, das cinco da manhã, com tal calma silenciosa, aí se faz propício camperear palavras, contos, causos, crônicas. E o campeiro fareja quando o percurso se desenha longo e, bombeando bem, interminável. Mas quem não tem o apreço do amanhecer, antes ainda de montar o cavalo, mas já desfrutando da imediata cavalgada?
Em mãos tenho Turno da Madrugada, da poeta paulistana Mariana Ianelli, que terá sessão de autógrafos neste sábado (9/3) em Porto Alegre. Este livro, esta prosa, se perfila como Serrano, o gateado de minha saudosa memória, cuja montaria te levava a estado misto de paz, potência e alerta, pois ele, como a vida, se mostrava vivo a qualquer mudança na madrugada e te inspirava a tanger o momento-a-momento daquele correr de sol, que se vem como louco, e ninguém para.
Para montá-lo, havia o ritual. Sob seu olhar 180 graus ia o guasca acomodando cada um dos aperos, primeiro o xergão, logo a carona, o lombilho, os pelegos, badana e demais. Confiança, sim, mas sem vacilações, um alerta contínuo, nunca se sabe com certeza certa o momento seguinte. Este livro é como Serrano, para que ele não te derrube, olho vivo.
Poetas perguntam, já sabemos, mas mesmo em prosa, como neste livro, Mariana Ianelli trança indagações, às vezes sísmicas, e também tece críticas com força telúrica. O leitor, respiração curta, lendo, lendo em alerta, para não cair.
“Quem cala consente?”, ela lança lá pelas tantas, para dizer que nem sempre, ou, na verdade, quase nunca. Às vezes, os que calam é “porque entram em choque, estancam de horror, se petrificam, e os que calam porque só sabem o que sentem, e o que sentem é que todo cuidado é pouco, uma palavra a mais... E a corda rompe”. Diz “não consentem as meninas africanas mutiladas nos rituais das tribos, não consente a iemenita de oito anos, vestida de noiva, coroada e maquiada como uma mulher de trinta”. “Retifiquemos... Melhoremos o provérbio”, demanda La Ianelli em desafio. Insurgência contra o ritualístico impensado, o tradicional sem reflexão, a norma verticalizada, a apropriação da iniciativa. Como naquele caso relatado por Cristopher Bollas, o psicanalista, em que o jovem casal e o filho pequeno, preparando-se para o café matinal, o menino, sem querer, vira o copo d’água e a mãe, na pressa de sair para o trabalho, reclama do menino, por inábil, e rapidamente seca tudo com um pano. O garoto, paralisado, observa. Foi-lhe suprimida a iniciativa natural de ele próprio secar o que fez, se lhe dessem tempo. O silêncio do pai consolidou o lugar para o filho. Não terá consentido, mas calou-se.
Nosso Mario Quintana se afinaria com Mariana, ao se contrapor, a seu modo: “Viver é simplesmente conviver. Simplesmente?”.
Mas não só de perguntas se nutre a poeta. Ela, como nós, se mostra estarrecida ante a morte de Mário Faustino, nosso grave poeta piauiense, que morre aos 32 anos naquele antigo acidente de avião, nos Andes peruanos. O que a deixa perplexa, e que igualmente nos paralisa, é que Mário Faustino, “jovem pensador de alma antiga”, “tinha palavras palmilhando prenúncios, desempenhando seu faro, tangendo agora, justamente agora, o depois, numa espécie de ‘transvivência’, tal qual se esclarece no poema famoso de Drummond, A Morte no Avião”. Traz-nos Ianelli “os impressionantes presságios de morte” nos poemas de Faustino, aos quais ela enlaça, consternadamente, com a matéria drummoniana. É o Faustino do acidente fatal poetizado, sem o sabê-lo, no poema de Drummond.
“É espantoso”, como resume Ianelli seu choque. Trouxe-me, essa reflexão, as dores e os mistérios das palavras sob a força de Cecília Meirelles: “Ai, palavras, ai, palavras, que estranha potência a vossa...”. É justamente essa força estranha e imparável, creio eu, capaz até de pressagiar, que, como um vórtice, atrai, encanta, hipnotiza, subjuga a poetas.
Atingiu-me em dó sustenido quando ela fala dos que sofrem de “abstinência de floresta” e apaziguam sua dor enchendo “nosso apartamento de samambaias e palmeiras”. Chegou-me essa ideia à raiz, eu, que sofro de abstinência de mato, não só dos verdes inumeráveis, também do cheiro do mato que, se farejado na madrugada, te leva a andares superiores da alma, ali onde vivem poetas, vivos, mortos e por vir.