Por Thiago Mio Salla
Docente da USP, pesquisador especializado na obra de Graciliano Ramos
A entrada da obra do escritor Graciliano Ramos (1892-1953) em domínio público a partir de 1º de janeiro deste ano corresponde a um novo momento na trajetória desse autor tão estudado e tão celebrado. Tal mudança permite que o conjunto de seus livros já editados não apenas se aperfeiçoe, mas também se amplie. Se é fato que a possibilidade de multiplicação das edições possa levar a deturpações e corrupções do texto, o contrário também se mostra válido. Um novo velho Graça pode emergir mais conectado com o legado que ele próprio nos deixou e se encontra guardado, sobretudo, no arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros e na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, ambos da Universidade de São Paulo (USP).
Sendo assim, para além do aval conferido pelo domínio público, o projeto de edição das obras completas de Graciliano Ramos realizado pela editora Todavia tem como norte um trabalho inédito de restauração do texto do escritor, trabalho este ancorado em extensa pesquisa há anos realizada nas duas instituições acima indicadas e também em outros arquivos e bibliotecas do Brasil e do Exterior.
Começamos com Angústia, a obra de Graciliano mais bem-sucedida ao longo da vida do escritor: ela alcançou cinco edições até sua morte, ganhou o prêmio Lima Barreto de 1936 e foi eleita, em expressiva votação nos anos 1930, como o romance mais importante da década. Para o estabelecimento do texto deste livro, realizou-se o cotejo de 12 de suas versões, desde a primeira publicada em 1936 até a quinta, a última em vida do autor, datada de 1952. Entre uma e outra, consideraram-se ainda a segunda, terceira e quarta edições, além de provas tipográficas, exemplares de trabalho, recortes de jornal e uma até então desconhecida cópia manuscrita de dois capítulos do romance pertencente à Biblioteca Pública de Manaus.
Mediante esse trabalho comum às edições críticas, chegou-se ao texto-base que melhor representa o último ânimo autoral (um exemplar de trabalho da quarta edição devidamente revisto e anotado por Graciliano), bem como foram produzidas notas de fim que procuram documentar o laboratório do escritor e os diferentes estágios do romance.
Entre outros aspectos, é fascinante compreender porque, ao longo de sua vida, Graciliano malhou impiedosamente a obra-prima Angústia, julgando-o um romance mal escrito e repleto de gralhas terríveis, pois, como fora preso no dia em que entregou os manuscritos do romance para serem datilografados, não teve a oportunidade de aprimorar a narrativa até receber o livro impresso em mãos enquanto ainda se encontrava detido. Nas suas Memórias do Cárcere, ele chega a dizer: “A datilógrafa, o linotipista e o revisor tinham feito no livro sérios estragos. Onde eu escrevera opinião pública havia polícia; remorsos em vez de rumores. Um desastre”. De fato, um desastre: além desses deslizes, havia uma infinidade de outros erros tipográficos que comprometiam consideravelmente o texto. Graciliano se livra da maior parte deles na segunda edição e até a quinta, mesmo já próximo da morte, procura aperfeiçoar incessantemente a história de Luís da Silva. Em suma, o perfeccionismo do autor tão notório no contido Vidas Secas também dá as cartas no derramado Angústia.
Além de edições que procurem apresentar os textos em conformidade com o desejo último do autor, o projeto inclui a publicação de inéditos. E é o que se observa com o lançamento da fábula em versos Os Filhos da Coruja, cujo manuscrito assinado pelo pseudônimo de J. Calisto data de 1923. Com esse texto, o autor alagoano estabelece diálogo vivo com as tradições europeias do gênero, mediante o gesto de recontar uma narrativa recolhida pelo celebrado escritor francês La Fontaine. No Brasil, o texto já havia recebido versões de Justiniano José da Rocha e de Monteiro Lobato. Ao contrapor a protetora mãe coruja ao predatório gavião, o autor de Angústia vai além: confere um tom local, abrasileirado, à narrativa, com destaque para menções ao Nordeste e à seca. E mais, antes de seus romances, antes de seus livros de memória, dirigindo-se a um público restrito, Graciliano já procurava incutir a necessidade de uma ação libertadora fundada no juízo crítico em relação ao universo violento e excludente a seu redor. Avesso a dogmatismos, valendo-se de uma moral não moralista, sinaliza a necessidade de despir-se da vaidade e de problematizar certezas e incertezas, visando à tomada de consciência daquilo que precisaria ser superado.
Em resumo, quer conectando o velho ao novo, quer unindo o novo ao velho, os livros aqui referidos mostram que Graciliano nunca esteve tão vivo 70 anos depois da sua morte.