Por Marcelo Dutra da Silva
Ecólogo e professor da Furg
Alguém pode nascer, crescer e passar boa parte da vida – às vezes a vida toda – alheio ao seu contexto, desconectado da realidade, sem perceber as relações homem-natureza, em qualquer direção, até a mais remota das regiões. Em Arrabalde – Em Busca da Amazônia, do documentarista, produtor de cinema e fundador da revista Piauí João Moreira Salles, a mensagem é essa. Vivemos no país da maior floresta tropical do mundo, mas pouco sabemos desse sistema, de sua complexidade social e ambiental... A bem da verdade, o brasileiro conhece pouco o Brasil.
Os mistérios amazônicos têm instigado pesquisadores de toda parte, mas nem tanto as pessoas comuns. Apesar de a Amazônia abrigar múltiplas culturas e a maior biodiversidade do planeta, e de lá serem produzidos 20% de toda água doce conhecida, ao apurar a forma como o território vem sendo ocupado desde os anos 1960 Salles evidencia a falta de curiosidade e de afeto que de certa forma pautou o modelo de exploração do bioma, que aos poucos foi sendo devastado e reduzido à lógica das economias extrativistas.
Arrabalde nos convida a olhar de forma atenta para a floresta, para seu presente e suas possibilidades de futuro. Uma defesa contundente do nosso maior patrimônio ambiental. Na essência, um chamado que o autor conduz por mais de 400 páginas de consciência política, social e científica. Algo que muitos vão ser provocados a experimentar pela primeira vez. O Brasil precisa olhar para a Amazônia, o autor escreve, afinal, “somos os guardiões desse legado” e é urgente que cada um de nós se responsabilize por ela. Um convite arrebatador, com impressões de efeito imediato.
Ao ler Arrabalde, logo nas primeiras linhas, já fui arrastado a associar o texto com as minhas experiências. Eu sou do Sul, vivo uma realidade distante e muito diferente de quem mora próximo ou está inserido no território amazônico, mas sou fortemente impactado por tudo de bom e de ruim que acontece lá. Talvez seja esse o efeito que o autor espera em cada um, mas é fato que as impressões formadas vão depender da lente utilizada pelo leitor ao se voltar para esse olhar florestal.
No meu caso, em particular, um pesquisador da área de ecologia que atua em uma universidade federal e que escreve sobre temas da atualidade, inserido no debate das questões ambientais... A leitura de Arrabalde me joga no campo fértil dos dados, dos discursos e da defesa da floresta e dos povos originários. Outras lentes despertarão outros modos de ver.
Em setembro do ano passado, em parceria com o pesquisador americano Philip Martin Fearnside, que há muitos anos reside no Brasil e estuda a Amazônia, publiquei um artigo na renomada revista científica Environmental Conservation, da Cambridge University Press & Assessment, em Cambridge (Reino Unido). No texto, que intitulamos Brazil: Environment Under Attack (“Brasil: meio ambiente sob ataque”), construímos uma espécie de linha do tempo da agenda do desmonte das políticas ambientais, que vinham sendo pautadas nos últimos governos, a um ponto em que começamos a verificar aumento acelerado do desmatamento, queimadas e áreas de exploração mineral ilegais, para além de toda a sorte de ataques e ameaças aos povos da floresta. O artigo vai ao encontro dos alertas levantados por Salles e ilustra uma de suas afirmações, a de que talvez nenhum país tropical disponha de uma infraestrutura técnica – universidades, institutos, pesquisadores, organizações não governamentais – tão robusta quanto a nossa. O problema é que nem sempre a política e muito menos os interesses estão alinhados ao conhecimento.
O livro também explora o contexto político, atribui culpas e culpados (alguns pingos nos Is), faz referência aos laços ideológicos entre o campo e determinadas correntes políticas e a ameaça econômica que a atual situação da Amazônia representa, particularmente para quem exporta. Uma ameaça real e irrefutável, da qual não vamos nos livrar tão rápido, sobretudo porque o desmatamento continua elevado e o esforço de fiscalização e controle segue pequeno e, finalmente, porque ainda não conseguimos estimular a conversão do destruir para as verdadeiras vocações da Amazônia, que tem muito mais valor e recursos a oferecer se as árvores forem mantidas de pé.