Por Davi Pessoa
Doutor em Teoria Literária pela UFSC, professor na UERJ
Em 1968, no semanário Tempo, Pasolini publica um artigo sintomático – o ano em questão e o que ele significou para uma possível abertura a uma suposta “promessa de liberdade” – cujo título era: O Medo de Ser Devorado. Pasolini sentia que os jovens, afetados pela “ideologia hedonista do consumo”, tinham pavor de serem devorados e, ao mesmo tempo, desejavam ser devorados. Desse modo, Pasolini – leitor de Freud via Herbert Marcuse, Sándor Ferenczi e Daniel Paul Schreber, bem como de Hegel e Alexandre Kojève – confrontava a servidão, poderosa patologia disseminada pelos regimes totalitários, que sequestram “a doença juvenil do desejo”, isto é, a potência do desejo, o desejo de utopia, para impor a coação, a demanda de defesa, o terror e “o medo de ser devorado”.
Pasolini, sobretudo, ressaltava ali a dialética entre “sistema” – termo que ganha, em seu entendimento, um “uso obsessivo” – e sua negação, traduzida como “dissidência” ou “contestação”, isto é, termos muito presentes nas sociedades capitalistas já avançadas, cujo “sistema” termina sempre por assimilar tudo, por integrar toda “possível” diversidade natural ou contestação racional, que, por sua vez, anota Pasolini, lendo as elaborações de Freud acerca da neurose obsessiva, “enrijeceu-se numa espécie de fórmula obsessiva, que torna as pessoas, ao mesmo tempo, furiosas e impotentes”.
A contestação, no entanto, pode não escapar ao sistema, tornando-se ela também codificada, quando o desespero “individualizado” – “única reação possível à injustiça e à vulgaridade do mundo” – torna-se codificado em “formas de contestação puramente negativas” e passa a ser “uma das grandes ameaças do futuro imediato”, gerando, assim, “extremismos que acabam se transformando em novas formas de fascismo”. Pasolini, assim, nos interpela: como profanar os improfanáveis do sistema capitalista, se “a realidade é infinitamente mais extensa do que o sistema, mas o sistema é infinitamente mais extenso do que nós?”. Como desativar o culto e a manutenção permanente do culto do capitalismo como religião, tal como se questionava Walter Benjamin?
Edson Luiz André de Sousa, em Furos no Futuro: Psicanálise e Utopia, reativa a proposição crítica de Pasolini, como retorno de uma exigência (e não de uma necessidade): não se pode pensar a liberdade sem uma reflexão profunda a respeito da servidão. Edson Sousa – professor titular do Instituto de Psicologia da UFRGS, autor de Psicanálise e Colonização: Leituras do Sintoma Social no Brasil (Artes e Ofícios, 1999), Uma Invenção da Utopia (Lumme Editor, 2007) e Imaginar o Amanhã (Diadorim, 2021), escrito ao lado de Abrão Slavutzky – convoca, nos oito ensaios que compõem o livro (dois escritos em parceria com Elida Tessler e Manoel Ricardo de Lima, além do prefácio de Donaldo Schüler), uma comunidade reflexiva singular-plural, movida por utopias desejantes que possam descolonizar nosso inconsciente, quando este se encontra capturado por fronteiras rígidas e imóveis.
Como ele nos aponta: “A utopia é fundamentalmente uma experiência narrativa de aposta na ficção, na criação, na fantasia e na ética do desejo” e “o inconsciente é uma espécie de fonte utópica em que nos banhamos: águas profundas, nas quais muitas vezes nos afogamos”. Assim, a singularidade da utopia é precisamente seu movimento de água-viva. Em muitas passagens, há uma transfiguração do conceito de utopia: “A utopia, como princípio, não deixa de ser uma correnteza contra a realidade” (p. 26); “a força das imagens utópicas está justamente no ‘fora da imagem’” (p. 27); “a utopia vem, portanto, se opor à tendência à repetição”, uma vez que “toda utopia coloca em cena um desejo” (p. 30); “utopia como contraimagem, como um não ao presente, como aposta no desejo e imaginação de outras formas de vida” (p. 70); “a utopia instaura um outro tipo de contato, acionando uma compreensão que vem plena de esperança, de invenção, recusando a repetição das catástrofes” (p. 79); “a utopia é, portanto, uma espécie de freio no delírio mimético que padecemos” (p. 91). Desse modo, a transfiguração da própria compreensão do que vem a ser a utopia nos põe em alerta diante das armadilhas dos centros de Poder.
Edson Sousa navega por águas obscuras e agitadas, nas quais somos singularmente mobilizados pelas correntezas da psicanálise, literatura, poesia, artes plásticas, fotografia e tantos outros saberes, como se perfurasse imagens até então circunscritas a um saber específico enclausurado e enclausurante, e para que possamos desativar essa máquina perversa, Edson nos aponta que “o real é o que produz um furo no saber. Esse furo é o que pode nos deixar com um resto na mão, com um eu não sei que possa instaurar um desejo de saber”.
Jacques Lacan, em 1972, proferiu em Milão a conferência O Discurso Psicanalítico, na qual dizia, entre tantas coisas, que o discurso capitalista pode ser astuto, mas está sempre destinado a explodir, visto que insustentável: “Isso se consome, se consome tão rápido que se consuma”. Furos no Futuro: Psicanálise e Utopia recoloca-nos em cena diante do gesto vital de fazer luta e luto, para que não tenhamos medo de sermos devorados e, ainda pior, para que não sejamos levados pelo desejo de sermos devorados.
Quem diz furos diz aberturas. Quem diz furos no futuro aponta para uma interdição no presente, pois “a terra que jogamos nos túmulos continuará ativa germinando novas sementes”.
Lançamento
- Será às 16h deste sábado (2/7), no V744atelier, que fica na Rua Visconde do Rio Branco, 744, em Porto Alegre.