Por Luiz Carlos Lacerda
Diretor, entre outros filmes, de “Leila Diniz” (1987) e “O que Seria Deste Mundo Sem Paixão?” (2020)
O cineasta Otto Guerra sempre foi um contumaz frequentador dos festivais de cinema, antes desse apocalipse sanitário interminável, com seus filmes originais, divertidos e irreverentes – e que os classificam não só como o melhor do gênero animação, mas como um dos nossos mais brilhantes realizadores. Um diretor outsider, quixotesco, realizador de filmes contra a caretice geral around the clock – como diria Bill Halley.
Seu relato autobiográfico em forma de romance inaugura uma faceta inusitada na sua produção artística.
Muito bem escrito, hipnótico, marcado pelo seu humor inteligente e dinâmico, mas sem fugir de contar as mazelas de uma existência pontuada por dramas sem apelações autocomplacentes (a complicada e sofrida relação com a mãe, a descoberta do câncer, as fases de penúria financeira que caracterizam nossa atividade cinematográfica, os tisunamis profissionais e amorosos).
Já nos seus filmes era evidente uma relação que beirava um certo sadomasoquismo entre seus personagens – notadamente nos cowboys gays – mas que acrescentou um componente pouco encontrado nessa corrente do comportamento sexual humano: o humor. Um humor autocrítico, mas longe de qualquer tipo de autocensura limitadora ou de um disfarçado mea culpa moral.
Exorcizava, assim, e ilimitadamente, um componente do machismo característico da cultura do mundo masculino brasileiro e – principalmente – gaúcho.
Esse senso de humor cáustico, que corta “na própria carne”, está presente na narrativa sobre sua doença e também nos relatos dos conflitos familiares. Reporta-nos à geração beat, especialmente Charles Bukovski, inexplicavelmente não considerado integrante dessa corrente quando se pesquisa esse momento chave da literatura americana dos anos 1950 em diante. Bukovski descreveu seus embates com sua mãe, mais detalhadamente no documentário sobre sua vida e obra, You Never Had It – An Evening With Bukowski (1981), de Matteo Borgardt, que se aproximam de algumas cenas deste livro.
Na literatura brasileira, há poucos exemplos desse desnudamento no gênero romance – onde muitas vezes os autores podem se permitir escancarar o seu “lado obscuro da lua”. É mais comum o encontrarmos nos diários íntimos – como nos do mestre da corrente de introspecção psicológica, o romancista mineiro Lucio Cardoso, autor da Crônica da Casa Assassinada, (reunidos na edição do Diário Completo, ed. Civilização Brasileira, 2012) ou nas publicações do também poeta, o gaúcho Walmir Ayala (Difícil É o Verbo, A Fuga do Arcanjo), que, além de abrir o jogo da sua homossexualidade, nos dá a chave para desvendar o crime feminicida do seu romance À Beira do Corpo (Ed. GRD, 1965) praticado por seu próprio pai contra a mãe do poeta.
No livro de Otto Guerra não há tragédias dessa ordem nem revelações de sexualidades marginalizadas. Há, como numa sessão de análise, o reconhecimento de suas limitações de enquadramento social – aí incluída a relação de casal, como ficou conhecida, e a dificuldade de lidar com o mundo do sucesso capitalista, marcado pela abdicação do princípio do prazer (o da arte) pelo principio da realidade (do dinheiro) – como ensinou Freud. Ele até consegue levar o estilo que marcou seus personagens lúdicos e livres para o mundo empírico da publicidade. Do negócio. Da negação do ócio. Mas os artistas, quando acham que estão vendendo sua alma, adoecem.
O talento com que traça a linha desses personagens é mesmo 'coisa de cinema', ao ponto de – muitas vezes – nos confundirmos onde estão os limites da ficção e da literatura confessional.
Nas cartas que Caio Fernando Abreu escreveu para Hilda Hilst (org. Italo Moriconi, Aeroplano, 2002), frequentemente descreve seu processo de enfrentamento do HIV, que o mataria, e há esse tônus equilibrado de senso de humor e sentimento de ameaça, de vida em risco de morte. Se observarmos cuidadosamente a filmografia já realizada do autor de Nem Doeu, lá encontraremos, latente, essa postura que mescla águas de distinta coloração e volume a caminho de um inevitável encontro.
E la nave va.
Sem ter pena de si, como se não fosse deixar de existir, mas daquilo que deixará de existir pra ele. Entre Sartre e Shakespeare, do Ser e o Nada ao Hamlet e sua dúvida existencial.
Mas o livro não é de filosofia e nem pretende ser exemplo de nada. E por isso sua leitura é prazerosa, porque “manchou de humano o lago” , como escreveu Mário de Sá-Carneiro no poema da suicida que lançou cartas na água, e porque narra uma vida aventureira e rica de inúmeras situações vividas com a mesma intensidade dos beats, algumas décadas depois, qual num filme que ainda estão nos devendo os bons cineastas desde Easy Rider (1969).
Sem pretensão, traça um retrato das últimas décadas do meio audiovisual brasileiro, sua permanente crise, as saídas, os cul-de-sac característicos da produção cinematográfica nacional – mas sem nenhum ranço professoral, sem receitas de “como vencer na vida mesmo fazendo força", nem vítima, nem fodão. Não quer ser exemplo de nada. Quer contar como remou nessa maré. Em transatlânticos e em canoas furadas. Como num livro de aventuras, como num roteiro de filme, com apresentação dos personagens, do conflito, dos subconflitos e do desenlace.
Mas que não é o último – deixa em aberta a possibilidade de novos capítulos da interessante trama. A obra aberta de Uberto Eco. Ou uma nova série de televisão pela qual já aguardamos, ansiosos.
O talento com que traça a linha desses personagens é mesmo “coisa de cinema”, ao ponto de – muitas vezes – nos confundirmos onde estão os limites da ficção e da literatura confessional.
Sorte nossa também esse grande artista escapar de morrer e, mais vivo do que nunca, aí está, produzindo essas fantásticas obras pra nossa grande curtição.
E continua a acalentar aquele menino baixinho, de oito anos de idade, escatológico e talentoso, tirando o sono da gente!
Deve ter muita coisa a ensinar para a inquieta e mal comportada Mouchette do filme de Robert Bresson.