Com vista para um bosque, Lya Luft, 81, está sentada na sua cama, falando ao telefone, enquanto cumpre o isolamento em sua casa em Gramado, na serra gaúcha. A escritora fala sobre afetos e o luto pela morte do filho, temas das crônicas de seu novo livro As Coisas Humanas (Record, 2020). Lya fala também, com naturalidade, sobre arrependimento: ela se arrependeu de votar no presidente Jair Bolsonaro em 2018.
— Te confesso que votei e me arrependi. Votei na falta de coisa melhor e me arrependi muito. Não conhecia direito. Queria uma trégua do PT, era muita esculhambação, corrupção, não foi uma fase boa. Votei nele (Bolsonaro) e me arrependi em seguida — conta a escritora. — Muita gente da minha família, que jamais votaria nele, porque ele não se portava bem mesmo como deputado, queria mudar. Alckmin estava muito sem possibilidade. Queria outro Brasil e deu no que deu — acrescenta.
A afabilidade que cultiva — com netos, filhos, companheiro, amigos e até animais de estimação — não a impede de indignar-se com a política brasileira:
— Parece que vivemos uma ditadura branca, uma coisa estranha, onde ele (Bolsonaro) decreta e tem que ser como ele quer. Mesmo em assunto em que ele não entende (coronavírus), quando estão morrendo milhares de pessoas. Essas distrações dos líderes na sua própria cobiça, a distração do sofrimento das pessoas, estão me deixando muito, muito entristecida. É preciso cuidar das pessoas.
Embora seu novo livro não seja de ficção, a imaginação de ficcionista parece ativada ao descrever metaforicamente sua impressão sobre a pandemia do coronavírus, que se espalha pelo mundo:
— É como se o globo terrestre estivesse coberto por uma nuvem escura, meio pegajosa, se arrastando por cima de tudo. É quase incompreensível que Ásia, Europa e Brasil estejam passando pela mesma coisa (ao mesmo tempo). Parece um grande animal, com tudo parado.
A pandemia afetou também os ritos tradicionais de lançamentos de seus livros, que envolvem concorridas palestras, participações em feiras e sessões de autógrafo com longas filas. Agora, a comercialização do livro é por lojas virtuais e delivery das livrarias de rua. Para Lya, a vida vem antes da economia:
— Muita gente ainda não está fazendo isolamento ou anda na rua sem máscara, mesmo quando cientistas recomendam. É possível reparar, em parte, a economia. Mas não pode reparar uma vida. São assuntos difíceis, filosóficos e éticos.
O leitor, que por ora não tem a chance de pegar um autógrafo, encontrará crônicas inspiradas no cotidiano da escritora, com passagens do tipo "gente como a gente": grupo no WhatsApp com as amigas e até relações desfeitas no Facebook por causa de política.
"Meu editor recentemente escreveu que existe o 'gênero Lya Luft'", afirma no texto em que se apresenta, "frente a frente". Os textos, porém, que mais se destacam são aqueles em que rememoram o filho André, morto aos 51 anos, em 2017, após uma parada cardiorrespiratória.
Em um deles, recorda um passeio de ônibus com o filho, ao voltarem do shopping onde o garoto ganhou um microscópio "de verdade" como presente. Em outro, ela lembra o dicionário para crianças que o menino escreveu após receber o "Luftinho", um dos dicionários escritos pelo pai Celso Luft (1921-1994). O filho escreveu verbetes como "alface", "amigo", "xixi" ("só conheço essa com x", dizia) e "zebu".
— Em última análise, escrevi, talvez, para mostrar que o amor é mais importante que a morte — diz.