
Foi como se desse para escutar o sonoplasta do Programa do Ratinho a cada notícia de Emilia Pérez nas últimas semanas: “Uepa!”, “Rapaz!”, “Ihaaa!”, “Ratinho-o-o-o!”. De qualquer maneira, embora o clima tenha amenizado, a atual temporada de premiações do cinema foi marcada por polêmicas.
Houve publicações nas redes sociais envolvendo racismo, xenofobia, estereótipos, blackface, entrevistas desastrosas, uso de inteligência artificial, entre outros pontos que levantam a questão: seria esta a temporada mais conturbada da história?
Não é de hoje
Nunca faltou polêmica na iminência do Oscar. O empresário e cineasta Felipe Haurelhuk, responsável pelo canal do YouTube Meu Tio Cinéfilo, relata que a Academia já passou por turbulências profundas em situações passadas.
Haurelhuk relembra que a formação de sindicatos quase impediu a cerimônia de ser realizada na edição de 1936. Menciona ainda que, na década de 1950, houve tensão entre a Academia e o Congresso dos Estados Unidos, no período da "caça às bruxas" do Macarthismo.
— O que vem acontecendo na atual campanha é apenas uma mudança do tipo de polêmica, não da intensidade dela — pontua.
A crítica de cinema e votante do Globo de Ouro Barbara Demerov lembra que, em 2016, houve o movimento #OscarsSoWhite, em que todos os atores indicados eram brancos — o que levou a uma maior diversidade no corpo votante e, por consequência, nos indicados nos anos posteriores.
Barbara recorda a vitória de Green Book como melhor filme no Oscar de 2019. Ao vencer o Globo de Ouro, antes da premiação da Academia, a temporada já havia se tornado polêmica após a descoberta de um tuíte do roteirista Nick Vallelonga, publicado em 2015, no qual fazia comentários islamofóbicos. Mahershala Ali, uma das estrelas do longa, é muçulmano.
Além disso, o diretor Peter Farrelly precisou pedir desculpas por seu comportamento inapropriado após uma matéria de 1998 ressurgir, como lembra Barbara, em que funcionárias denunciavam seu hábito de expor as partes íntimas.
— Ainda assim, com tuítes ressurgindo e polêmicas antigas também, Green Book foi o vencedor do Oscar. Isso contrariou muitas pessoas e também fez com que todos refletissem se a Academia estava mesmo priorizando a diversidade. Afinal, Green Book é um filme sobre um músico negro, mas que é contado a partir da perspectiva de um homem branco. Tanto é que Mahershala Ali venceu como ator coadjuvante, enquanto Mortensen foi indicado a melhor ator — destaca Barbara.
Não deixa de ser uma campanha política
A jornalista e votante do Globo de Ouro Mariane Morisawa ressalta que não é incomum haver controvérsias na temporada do Oscar. Afinal, trata-se de uma campanha e, como em toda campanha política, tudo pode acontecer. No entanto, ela frisa que esta temporada está especialmente conturbada:
— Mesmo na época de Harvey Weinstein (ex-produtor de filmes condenado por crimes sexuais, bastante atuante e vencedor de prêmios entre os anos 1990 e 2000), que jogava muito sujo nas campanhas, o alcance era menor. Só sabia quem acompanhava de perto os jornais e revistas dos Estados Unidos e, mesmo assim, muitas vezes as tramoias eram descobertas apenas depois da cerimônia. Hoje, com as redes sociais, o alcance de qualquer polêmica é muito maior e rápido — explica Mariane.
O crítico Marcio Sallem, editor do Cinema com Crítica e votante do Critics Choice, corrobora. Para ele, o impacto das redes sociais amplifica as polêmicas e, com isso, as campanhas de marketing se tornam agressivas neste segmento:
— Mas é bom esclarecer que as armas são as mesmas de anos anteriores e com os mesmos objetivos: alcançar a visibilidade de seu filme para os mais de 10 mil votantes e criar uma imagem positiva do indicado em entrevistas, posicionamentos públicos e eventos — reflete o crítico.
Por outro lado, Sallem acredita que a indicação de uma brasileira e o engajamento típico do internauta brasileiro ajudaram a potencializar o Oscar deste ano – seja por parte daqueles que apenas torciam nos comentários das publicações do Globo de Ouro ou da Academia, seja dos que engajaram negativamente nas redes sociais.
Mariane agrega:
— Nem a imprensa americana nem as instituições estavam preparadas para o que foi a campanha deste ano. Qualquer brasileiro que acompanha Big Brother Brasil sabe que brasileiro não precisa de direção nenhuma para tornar a vida de alguém um inferno nas redes sociais.
Movimentação internacional
Contudo, não foram apenas os brasileiros que atuaram ativamente na internet por conta da temporada do Oscar. O influenciador e crítico mexicano Miguel Araiza aponta que a legião de fãs – os fandoms – de cantoras pop como Selena Gomez e Ariana Grande criou uma situação exponencial, nada comparado com edições anteriores.
Mas também há Emilia Pérez, que Araiza classifica como “uma loucura a nível mundial” por conta de suas controvérsias envolvendo o México e a representatividade trans.
— Creio que na América Latina a conversa não é sobre o filme em si. Há um debate político fora do que normalmente se fala em uma temporada de prêmios — sublinha.
Miguel também acrescenta que não há tantos filmes chamativos em aspectos de qualidade, como em outros anos, o que abre espaço para o drama. Assim, a controvérsia dominou as conversas.
Para Mariane, o que torna a temporada de 2025 diferente é que há um grande escrutínio de ações passadas dos candidatos. Por causa das redes sociais, nada é deixado para lá, os concorrentes precisam ter vidas e carreiras completamente sem máculas – o que é impossível, como salienta a jornalista:
— No caso de erro, nem sempre um pedido de desculpas é suficiente, embora, em geral, um pedido de desculpas que pareça verdadeiro seja aceito com mais facilidade. Por exemplo, os pedidos de desculpas de Karla Sofía Gascón foram considerados, com razão, incompletos. Aquela história de "desculpe-me se ofendi alguém" não é mais suficiente, e assessores e agentes já deveriam saber disso.
Cuidado com as redes
Diante da experiência da temporada de 2025, é possível esperar que os estúdios e produtoras tenham maior atenção com o passado virtual da equipe.
Barbara salienta que esse fator, certamente, já vem sendo considerado há algum tempo, especialmente após as polêmicas de Green Book. Porém, com a avalanche negativa em torno de Emilia Pérez, em especial por causa de Karla Sofía Gascón, a indústria deve redobrar os cuidados digitais:
— Afinal, a intensidade desse tipo de polêmica só aumentou com as redes sociais. Algo que antes poderia ser abafado rapidamente, hoje ganha proporções gigantescas em questão de minutos.
Para o jornalista Jânio C.V. Nazareth, votante do Globo de Ouro e atuante em Hollywood há 20 anos, é curioso que a Netflix tenha investido intensamente na campanha de Emilia Pérez, mas não tenha realizado uma investigação para saber se o elenco e a equipe técnica tinham algum evento no passado que pudesse ofender o público. Ele brinca:
— Acho que, neste momento, já deve ter gente nos estúdios de cinema ligando para detetives para investigar o passado dos candidatos a emprego nos filmes.
Emília Pérez no centro das polêmicas
Boa parte das polêmicas são do filme Emília Pérez, que recebeu 13 indicações ao Oscar. Apesar da aclamação no Festival de Cannes 2024 – em que venceu em duas categorias: prêmio do júri e interpretação feminina —, e em posteriores premiações (vide Globo de Ouro), desde o ano passado já havia uma insatisfação com o longa.
Houve queixas dos mexicanos sobre a possível representação estereotipada, visto que Emilia Pérez é um filme francês ambientado no México, mas que foi majoritariamente rodado na França e não conta com um elenco majoritário da região que retrata — com exceção da atriz mexicana Adriana Paz, que interpreta uma coadjuvante na reta final da produção.
As justificativas do diretor francês Jacques Audiard também não ajudaram: ele alegou dificuldades de encontrar um lugar para filmar no país e que as atrizes mexicanas “não funcionaram”, além de admitir que não realizou uma pesquisa aprofundada sobre o México.
Como se não bastasse, o espanhol da atriz Selena Gomez, que tem origem mexicana, foi bastante criticado. Erros de tradução e críticas às músicas também entraram na mira do público – especialmente La Vaginoplastia, que aborda a cirurgia de afirmação de gênero.
A representação trans foi repreendida por críticos e associações ligadas à comunidade LGBTQIA+, como a Gay & Lesbian Alliance Against Defamation (GLAAD), que classificou o longa como um “retrato profundamente retrógrado de uma mulher trans”.
Mesmo com essas manifestações, Emilia Pérez seguiu aclamada na temporada de premiações, que tende a se concentrar em visões estadunidenses e eurocêntricas.
No entanto, tudo desandou após antigos tuítes de Karla Sofía Gascón ressurgirem com comentários preconceituosos sobre islamismo, muçulmanos, asiáticos, negros e o caso George Floyd, vacina da covid-19. A partir daí, ela foi afastada da campanha do filme e parou de comparecer às premiações. O prestígio de Emilia Pérez perdeu força.
Brasil na jogada
Um dia antes das publicações de Karla serem difundidas, a atriz comentou, em entrevista à Folha de S. Paulo, sobre a onda de ataques ao filme, acusando a equipe de Fernanda Torres.
As declarações repercutiram mal nas redes, e Karla passou a ser acusada de infringir as regras da Academia ao atacar diretamente outro concorrente. Em um pronunciamento oficial à Variety, ela negou ter se referido a pessoas "diretamente associadas" a Fernanda Torres, afirmando que sua crítica era direcionada às redes sociais e aos discursos violentos presentes nesses espaços.
De qualquer maneira, a presença de Ainda Estou Aqui na temporada de premiações – e, posteriormente, sua indicação ao Oscar – tem gerado manifestações entusiasmadas de brasileiros nas redes sociais. Para o bem e para o mal.
Por exemplo, veículos estrangeiros notaram que qualquer publicação sobre Ainda Estou Aqui ou contendo uma foto de Fernanda Torres atraía um engajamento sem precedentes. Por outro lado, o jornal francês Le Monde, que fez críticas ao filme, recebeu uma enxurrada de respostas enfáticas de brasileiros.
Além disso, Fernanda também foi alvo de uma campanha difamatória após a divulgação de um vídeo antigo em que aparece utilizando blackface em uma cena exibida pelo Fantástico, em 2008. Ela pediu desculpas publicamente em um depoimento concedido ao portal Deadline:
— Lamento imensamente por isso. Estou fazendo essa declaração porque é importante para mim abordar o assunto rapidamente, para evitar mais dor e mal-entendidos.
Inteligência artificial
A inteligência artificial também entrou em debate nesta temporada. O montador de O Brutalista (um dos filmes mais cotados para o Oscar), Dávid Jancsó, revelou, em entrevista ao portal RedSharkNews, que foram utilizadas ferramentas da empresa ucraniana Respeecher para ajustar o diálogo em húngaro dos atores, tornando o sotaque mais autêntico.
Também foi revelado que Emilia Pérez usou IA em um processo de clonagem de voz, com o objetivo de aumentar o alcance vocal de Karla Sofía Gascón.
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