Por Ivonete Pinto
Professora da UFPel, membro das associações de críticos de cinema do Brasil (Abraccine) e do RS (Accirs)
Não fosse soar como mais um dos estereótipos russos, poderíamos dizer que No Submundo de Moscou, filme que está em cartaz nos cinemas brasileiros, é uma salada russa. Isso porque os ingredientes são bem variados, chegando até à literatura britânica.
Na trama, o jornalista policial Vladimir Gilyarovsky (Mikhail Porechenkov) é chamado pelo ator e diretor de teatro Konstantin Stanislavski (Konstantin Kryukov) para que seja levado ao bairro Khitrovka. Ele quer conhecer de perto como vivem os verdadeiros ladrões, os bêbados, os mendigos, as prostitutas do texto de Gorki que está encenando, Ralé. Já no bairro, a dupla depara com o corpo de um rico sikh indiano atingido por um dardo envenenado.
Alguns desses elementos pertencem a fatos e personagens históricos descritos pelo jornalista Gilyarovsky do início do século 20. Stanislavski, por exemplo, montou Ralé e visitou o bairro em 1902. A trama, que dá o título original ao filme, é inspirada no conto O Signo dos Quatro, do escocês Arthur Conan Doyle. É o segundo episódio de Sherlock Holmes, cuja habilidade investigativa é transposta para a figura de Stanislavski. Uma mistura e tanto.
Mesmo embalado no gênero detetivesco, baseado no clichê “assassinato + roubo de joias”, o filme desperta interesse. Afinal, quem não gostaria de ver Stanislavski e Tcheckov como personagens, e ainda Tosltói e Gorki aparecerem na história como se estivessem logo ali?
De fato, é um luxo para o cinema russo ter esse quilate de personagens recheando um enredo. Eles fazem parte da cultura popular russa, estão no currículo escolar daquele país. Quanto ao protagonista, nas escolas de teatro do mundo todo não há quem não tenha estudado o consagrado método de atuação de Stanislavski.
Se, na Rússia, No Submundo de Moscou funciona como escapismo para desviar a atenção da guerra, para nós funciona pelo deleite de vermos personagens de uma literatura canônica, em cenários que estão no nosso imaginário. O antigo bairro Khitrovka, no centro de Moscou, foi inspiração para autores como Dostoievski, Tchekov, Puchkin e Gorki. No passado pré-revolução, um bairro extremamente violento, recriado através de uma produção grandiosa e esmerada, que só o tradicional estúdio russo Mosfilm seria capaz de fazer. Também houve locações na ex-capital russa, São Petersburgo (a sequência da perseguição dos barcos, ao final).
Há várias piscadelas ao espectador minimamente versado na literatura russa. Como um vendedor de jornais que banalmente anuncia o último livro do “Conde Tolstoi”, e o palco onde os atores ensaiam, o próprio Teatro de Arte de Moscou, fundado por Stanislavski, no qual foi apresentada A Gaivota, de Tchecov, com ele na plateia. Se isso não é o suficiente, há o charme de Stanislavski com seu interesse amoroso por uma ladra linda de morrer chamada Princesa.
No aspecto formal, o filme passa longe de qualquer inventividade ou profundidade. Algo diferente praticado pelo mesmo Karen Shakhnazarov em Enfermaria N° 6 (2009), pelo qual pode ser mais reverenciado. Adaptação de Tchecov, este filme se passa em um hospital psiquiátrico, traz reflexões filosóficas sobre a loucura e mostra um prólogo admirável, que remete a Andrei Rublev, de Tarkovski.
Mas, ao que parece, o momento das produções Mosfilm é dedicado a um cinema leve. No jornal independente Moscow Times, a crítica de cinema Larisa Malykova observou que os diretores estão preferindo filmar contos de fadas. Fugindo da realidade, eles escapam também da censura. Um exemplo é The Wish of the Fairy Fish, de Alexander Voitinsky, visto na Rússia por 8,5 milhões de espectadores em 2023.
As circunstâncias da guerra e o momento político com Vladimir Putin podendo ficar no poder por mais 12 anos (a reeleição em 2030 é possível), turbinam um sentimento nacionalista que aproxima o público russo do seu cinema.
Seja com filmes empenhados artisticamente, seja com propostas apenas para diversão, o certo é que os russos têm uma riqueza cultural inegável, sobre a qual nem um autocrata moderno, nem uma guerra devem abalar.
Karen Shakhnazarov, diretor de "No Submundo de Moscou": "Como pensar em cinema em meio à guerra?"
Karen Shakhnazarov cancelou sua vinda a São Paulo para o lançamento do filme. Isso porque, dois dias antes da viagem e em plena eleição presidencial que levou Vladimir Putin ao quarto mandato como presidente russo, o cineasta recebeu uma ordem do próprio presidente para ficar na Rússia. Além da eleição – e por causa dela –, o território russo estava em momento especialmente delicado inclusive como alvo de bombas. Ele não viajou, pois ordens de Putin devem ser cumpridas. Isso porque Shakhnazarov, 71 anos, é peça chave no cinema local: há 25 anos está à frente do Mosfilm, um dos maiores e mais antigos estúdios do mundo, por onde passaram nomes como Sergei Eisenstein, Vsevolod Pudovkin e Andrei Tarkovski e que, em 2024, comemora cem anos de atividades ininterruptas. A entrevista a seguir, que Shakhnazarov concedeu por videoconferência, GZH publica com exclusividade. Trata-se de uma iniciativa do CPC-Umes Filmes, braço de distribuição de filmes do Centro Popular de Cultura da União Municipal dos Estudantes Secundaristas de São Paulo, que promove o lançamento de No Submundo de Moscou no Brasil. Na conversa, mesmo sem tirar os óculos de sol em sua sala escura, o cineasta mostrou-se simpático e falante, estendendo o papo que seria de 30 minutos para mais de uma hora. Previsivelmente, tergiversou em perguntas sobre a guerra – sendo, no entanto, enfático nas críticas à Ucrânia – e defendeu a escolha do gênero “filme de detetive” no qual seu mais novo filme foi concebido.
Vladimir Putin ficará no poder por mais seis anos. A economia vai bem, o estilo de vida da população melhorou. Mas há o boicote à Rússia em função da guerra, inclusive de parte das distribuidoras de cinema europeias e norte-americanas. Por causa disso, pela ausência de filmes estrangeiros, as bilheterias dos filmes russos têm se beneficiado? Como está esse cenário?
O investimento do governo no cinema sempre foi grande. Estamos produzindo ainda mais filmes e séries neste período. Apesar de o Mosfilm ser governamental, o estúdio é autossustentável. Precisamos de bilheteria. Não temos lançamentos de nossos filmes no Exterior, então fico muito agradecido de o meu filme ser lançado no Brasil. No Submundo de Moscou foi um sucesso nas salas de cinema, na TV e na internet (na Rússia), por ser um filme leve, uma fantasia. As pessoas precisam relaxar um pouco, precisamos ver coisas leves, porque não está fácil.
No Submundo de Moscou estreou em 1,8 mil salas na Rússia, foi tudo isso mesmo?
Ainda mais.
O senhor é responsável pelo reerguimento do Mosfilm. Como virou diretor do estúdio? Como foi escolhido para o cargo?
É uma grande aventura. Quando me escolheram para ser diretor, o estúdio estava em uma situação muito ruim. Não havia dinheiro, estava praticamente parado. Criamos tudo do zero, desde a contratação de engenheiros e a compra de sistemas de tecnologia de ponta. É, hoje, um dos estúdios mais preparados da Europa. Fui escolhido pelos diretores de cinema que estavam na diretoria à época, como Sergei Bondarchuk (diretor nascido na Ucrânia, ator do clássico Guerra e Paz, de 1965). Hoje, o interesse maior da minha gestão está voltado à distribuição, por meio do nosso canal no YouTube.
O CPC-Umes promove mostra de filmes russos há 10 anos no Brasil, sempre com bom público. Houve interrupção apenas no primeiro ano da guerra. Os filmes brasileiros também chegam na Rússia?
O público brasileiro é pensante e conhecedor do cinema russo. Senti isto quando fui ao Brasil, em 2018, para lançar Anna Karenina – A História de Vronsky. Nós, russos, temos filmes de temáticas muito diferentes, que provocam interesse no Brasil. Infelizmente, o cinema brasileiro quase não é visto na Rússia. Novelas, sim, temos sempre na televisão. Acho lamentável, pois o público russo gostaria de conhecer mais filmes brasileiros.
Em No Submundo de Moscou não há referência às guerras, como em Tigre Branco e outros filmes seus. A história agora é detetivesca, com pitadas de humor, em uma linguagem popular. Como a crítica dialogou com o filme na Rússia?
Os críticos entenderam bem a proposta, o filme foi bem aceito. Desta vez quis fazer algo leve e divertido. Uma aventura tipo Alexander Dumas, com direito a romance e fantasia. A verdade é que hoje não estou nem preparado para ver um filme sério. A situação no nosso país está muito difícil.
Nesses dois anos de guerra, estimativas indicam que já passam de 700 mil mortos em ambos os lados, entre civis e militares. Além das vidas perdidas, há o patrimônio que corre risco. Por exemplo, algo lembrado por nós, cinéfilos, quando ficamos sabendo que a ucraniana Odessa foi bombardeada pela Rússia, é a escadaria onde Sergei Eisenstein filmou o clássico Encouraçado Potemkin em 1925. A escadaria de Odessa é um ícone do cinema russo-soviético que resiste ao tempo. Resistirá a essa guerra?
A guerra é horrível. Como podemos pensar em cinema em meio à guerra, quando as pessoas estão morrendo? Penso mais nas vidas humanas neste momento. Não sei como as pessoas veem essa guerra na América Latina, mas, para nós, está muito claro: o poder na Ucrânia está com neonazistas. A guerra é um horror, mas a Rússia está lutando contra o neonazismo.
No Submundo de Moscou
De Karen Shakhnazarov. Aventura, Rússia, 129 minutos. Em cartaz no Espaço Bourbon Country e na Cinemateca Paulo Amorim, em Porto Alegre. Classificação: 14 anos.