Por Leonardo Bomfim
Crítico e programador da Cinemateca Capitólio
Conheci o Décio em uma noite apropriadíssima. Foi na sala de cinema P. F. Gastal, durante a exibição de La Cecília, um filme francês dos anos 1970 sobre a colônia anarquista fundada por italianos em Santa Catarina. Assumidamente libertário, Décio aproveitou o debate para questionar dezenas de más intenções ideológicas e saiu de cena com uma dica preciosa:
– Leiam as Memórias de José Garibaldi escritas pelo seu grande amigo Alexandre Dumas.
A descoberta de uma turma jovem disposta a ver e discutir apaixonadamente cinema e política o enchia de entusiasmo, era notável. Um tempo depois, veio a época da defesa incondicional de Django Livre, de Tarantino.
– Ele não bate prego sem estopa – dizia antes de elencar tudo que o diretor norte-americano referenciava (e reverenciava) em seu filme.
A gargalhada gostosa acompanhava a bronca na turma (a nossa) que não percebeu as mesmas qualidades na obra – “Vocês são jovens, ainda vão aprender, ele foi o único cineasta que lembrou do bicentenário de Wagner e Verdi”.
Festejava poder ver num filme contemporâneo o encontro inusitado de suas duas grandes paixões: a música erudita e o faroeste. Nos últimos anos, Décio colocou-se em uma missão incansável: catalogar e reavaliar toda a história do western. Alucinava com as novas cópias em HD de clássicos consagrados, mas não descartava os DVDs vagabundos de filmes de terceira linha. Assistia a tudo e carimbava as devidas notas. Estabelecia novos cânones. Mas alguns mestres, como John Ford e Howard Hawks, seguiam acima do bem e do mal.
Décio ligava dia sim dia não para a Capitólio para consultar algum detalhe sobre um maravilhoso western spaghetti de Sergio Sollima ou uma produção B subversiva de Jack Arnold. Queria saber informações sobre o compositor da trilha ou um ator coadjuvante que estavam devidamente creditados na tela. A pesquisa acabou resultando em alguns textos preciosos sobre o gênero publicados no Zinematógrafo, fanzine de crítica de cinema produzido pela mesma trupe jovem que programou o filme anarquista na Sala P.F. Gastal. Escreveu sobre a obra pioneira de Edwin S. Porter, a intersecção do gênero com a ópera e especialmente sobre a questão essencial, o DNA do western.
– Não é a luta do bem contra o mal – ele afirmava – mas a da justiça contra a injustiça.
Engana-se, no entanto, quem pensa que Décio só se interessava pela sua dupla paixão. Foi um frequentador assíduo de praticamente todas as programações culturais da cidade. No cinema, acompanhava com a mesma intensidade o banho de sangue dos filmes da mostra A Vingança dos Filmes B e as experimentações apresentadas no CineEsquemaNovo. Muitas vezes saía das exibições cuspindo marimbondos:
– Os filmes brasileiros se dão bem no documentário, a influência da televisão é terrível na ficção.
Pouco antes de morrer, já em um hospital italiano, revelou aos familiares que precisava voltar imediatamente a Porto Alegre. Havia gente que o esperava numa praia para rodar um filme “espanhol” – nada a ver com Almodóvar ou Saura, garantiu. Era outra coisa. Podia ser a referência a algum projeto que não seguiu adiante da nossa turma. Houve muitos, e, num deles, a ideia era registrar em áudio as histórias de Décio e montar com as imagens de Randolph Scott cavalgando sozinho pelos desertos americanos.
Mas também pode ter sido uma recordação visionária e delirante de um possível filme de seu principal pupilo, Rogério Sganzerla. Décio foi professor do então futuro diretor de O Bandido da Luz Vermelha no Colégio Catarinense, em Florianópolis, nos anos 1950. Foi ele que introduziu o cinema na vida daquele pré-adolescente, apesar da pouca idade que o impedia de acompanhar as sessões do cineclube escolar.
Percebendo certa apatia de Sganzerla para as tarefas escolares, Décio deu um jeito de abrir uma exceção com os superiores Jesuítas:
– Ele tem problemas com as tentações, o cinema pode tirá-lo desse caminho.
O resto é história.
E a relação íntima com Sganzerla seguiu constante ao longo de décadas. No leito de morte, em meados dos anos 2000, o cineasta recebeu a visita de Décio e lançou uma pergunta desconcertante para o antigo professor: qual é o seu santo preferido? Décio titubeou, ficou um tempo em silêncio em busca de uma resposta impossível, e terminou apontando para as outras companhias do quarto:
– Meus santos são elas, Helena Ignez e suas duas filhas, Sinai e Djin.
A homenagem
- Filósofo e historiador formado em Letras, pesquisador da música erudita apaixonado por cinema, Décio Andriotti morreu em 29 de abril do ano passado, após sofrer um AVC. Ele tinha 85 anos e estava na Itália – fazia viagens semestrais à Europa para acompanhar as temporadas de ópera, o que registrava em escritos que distribuía entre amigos.
- Neste sábado (29/6), a Cinemateca Capitólio, em Porto Alegre, o homenageará exibindo No Tempo das Diligências (1939), de John Ford, um de seus filmes preferidos. Depois, o descerramento de uma placa marcará o batismo oficial da Sala Multimídia da cinemateca, que passará a se chamar Sala Décio Andriotti.