Quando se cria uma lenda do tipo que cingiu a vida da grande diva da ópera do século 20, fica complexa a tarefa de separar o mito do ser humano. O documentário Maria Callas – Em Suas Próprias Palavras (2017), em cartaz na Capital, é um esforço nesse sentido.
Dispensando narração ou qualquer outro recurso explicativo, a produção dirigida por Tom Volf reconstitui a vertiginosa trajetória da soprano (1923 – 1977) por meio de entrevistas para a televisão, imagens de arquivo e áudios de cartas lidas na voz da estrela do cinema francês Fanny Ardant. Em meio a esse material riquíssimo, em parte inédito, os fãs vão saborear gravações de árias – exibidas, felizmente, na íntegra – que mostram por que Callas é Callas.
Sobra, entretanto, bastante filme para a vida amorosa de Callas, notadamente seu longo e intenso relacionamento com o magnata Aristóteles Onassis, que terminou abruptamente quando ela soube pela imprensa do casamento dele com Jacqueline Kennedy. Depois, Callas o aceitou de volta em uma “amizade apaixonada”.
A tensão entre “Maria” e “Callas” move o documentário. Aqui, a artista que ganhou fama de tempestuosa acerta as contas com a imagem criada à sua revelia. “Sim, cancelei performances, mas menos do que outros cantores”, declara em certo momento.
Demonstra impressionante clareza sobre a maneira como funcionam as coisas – o trabalho, o amor, a imprensa – e sobretudo serenidade em relação às suas escolhas de vida, como o fato de não ter podido constituir uma família.
Em outros momentos, Callas prefere simplesmente atribuir o libreto de sua vida ao destino. Nascida em Nova York em uma família de imigrantes gregos, foi preparada desde criança para ser uma estrela. O rigor da formação e a disciplina da prática a colocaram entre as maiores: em seu retorno a Nova York depois de sete anos, o público acampou na fila como fazem hoje os jovens com astros da música pop. Mas a fama também cobrou seu preço: a certa altura, foi acometida por problemas de saúde e por uma estafa que a afastaram do palco. Viveu seus últimos dias acalentando um retorno.
Maria Callas – Em Suas Próprias Palavras tem o mérito de mostrar a mulher por trás da lenda. “O que eu faço em meu tempo livre? Nada. Eu apenas vivo uma vida humana”, diz ela. “Admito que tenho um passatempo muito ridículo e vergonhoso. (...) Amo receitas! Eu nunca as uso, mas quando acho uma receita em um jornal ou revista, rasgo e coloco em um caderno.”
Sobre a ideia de a ópera ser entediante, Callas diz que o é apenas quando não apresentada da maneira certa. Não foi o caso dela.