Em uma jornada que a ficção torna possível, mas a vida real aponta como improvável, Helen Beltrame-Linné cruzou uma longa ponte que conecta dois universos distantes movida pela paixão por Ingmar Bergman. Tinha 17 anos em 1998, quando assistiu, em São Paulo, a Morangos Silvestres (1957), um dos muitos filmes clássicos do diretor sueco. Aos 33, em setembro de 2014, assumia a direção da Fundação Bergmancenter, em Farö, ilha da Suécia encravada no Mar Báltico, com cerca de 500 habitantes. Por mais de 40 anos, foi ali o refúgio onde um dos maiores criadores do cinema em todos tempos viveu, trabalhou e morreu – em 30 de julho de 2007, aos 89 anos. Neste sábado, cinéfilos de todo o mundo celebram o centenário de nascimento do autor de tantas obras-primas – entre outras, O Sétimo Selo (1957), Persona (1966), Gritos e Sussurros (1972) e Fanny & Alexander (1982).
A epifania diante de Morangos Silvestres foi tal que Helen passou a garimpar em cinematecas e videolocadoras tudo com a assinatura de Bergman. No final de 2001, ao saber que o diretor encerraria sua carreira encenando no Teatro Real Sueco Fantasmas, de Ibsen, comprou a passagem para Estocolmo – sem falar uma palavra de sueco. Aproveitou para fazer uma peregrinação a Farö, visita que tornou-se recorrente até virar seu próprio endereço no mundo.
– Farö é um ponto de peregrinação cinéfila, assim como Rimini (cidade italiana) é para os fãs de Fellini. A diferença é que Farö é a meca do cinema, porque a relação de Bergman com a ilha não era só afetiva. Rodou sete filmes lá. É uma combinação rara e genuína na relação de um artista com um local – diz Helen.
Ela deixou o cargo na ilha no fim de 2017. De volta ao Brasil, é agora editora do caderno cultural Ilustríssima, da Folha de S.Paulo. Na quinta-feira, Helen veio a Porto Alegre para participar de um debate na Cinemateca Capitólio sobre Persona (1966), drama psicológico que Bergman rodou em Farö com duas de suas simbólicas musas, Bibi Andersson e Liv Ullmann. Persona é um dos cinco clássicos de Bergman que estão sendo exibidos em cópias restauradas no espaço até este domingo.
Sinopse das andanças de Helen antes de aportar na ilha: entre outras atividades no Brasil, formou-se advogada e trabalhou com produção de cinema e teatro. Em Paris, fez mestrado em Direito e cursou Cinema. Casou-se com um jornalista sueco e colocou na mira ganhar uma bolsa de residência no Bergmancenter, instituição criada em 2009 para preservar a memória de Bergman – conta com cinema, restaurante, biblioteca, ateliê de artes, loja com memorabilia e salas de exposição. Foi morar em Estocolmo e alugou uma casa em Farö para vivenciar a atmosfera bergmaniana.
O sueco mais afiado na ponta da língua, o robusto currículo acadêmico e profissional, providenciais bons contatos e, fundamental, o entusiasmo por Bergman lhe valeram, em 2014, a indicação para concorrer à direção do Bergmancenter, um dos três braços que mantêm o legado do cineasta.
A Fundação Ingmar Bergman, em Estocolmo, gere a propriedade intelectual do diretor, enquanto a Fundação Bergman Estate, em Oslo, administra as cinco casas de Bergman em Farö, adquiridas por um milionário norueguês. Os filmes pertencem ao Instituto de Cinema Sueco e outros distribuidores.
Helen foi rapidamente aprovada para assumir o disputado cargo. Lidar com um patrimônio cultural da Suécia é conquista rara para uma estrangeira. Teve mais: ainda em 2014, assumiu também a direção da Semana Bergman, evento anual no verão europeu criado com o aval do mestre em 2004 – inclui visitas por locações de filmes, sessões de cinema, apresentações musicais, performances teatrais e conversas com especialistas na obra do diretor e cineastas convidados – em 2018, foi realizada entre 25 de junho e 1° de julho, com presenças, entre outros cineastas, de Yorgos Lanthimos, Margarethe von Trotta, Mia Hansen-Løve e Jane Magnusson (autora do documentário Bergman – 100 Anos, que estreia quinta-feira no Brasil). Foi a primeira vez que uma mesma pessoa acumulou as duas funções. Helen, aliás, tem uma participação indireta em Bergman – 100 Anos. O filme de Jane Magnusson passa em revista a carreira do diretor tendo como eixo narrativo o ano de 1957, definido como ponto de virada na sua trajetória rumo à consagração internacional.
– A história é ótima. Também apontaria esse como um ano definidor. Em dezembro de 2016, eu estava preparando a exposição que seria aberta em maio de 2017 e fiz uma reunião com a Jane. Ela começava a pesquisa para o filme e comentei que estava com uma exposição nova, que teria 1957 como o ano essencial para Bergman. Mas eu tinha problemas de espaço, tempo e dinheiro para destacar os dois longas que ele fez em 1957, O Sétimo Selo e Morangos Silvestres. Minha alternativa seria focar em apenas um. Ela me olhou muito séria e disse: "Helen, faça sobre um, por favor, senão você vai acabar com meu filme" (risos). Optei então por O Sétimo Selo.
Sobre o filme que provocou sua vinda a Porto Alegre, Helen diz:
– Persona é um filme pivotal para o Bergman, tanto no âmbito pessoal quanto profissional. Ele estava deprimido, perguntando-se se ainda tinha alguma coisa a dizer como artista. Na vida pessoal, a situação era a mesma: estava cansado daquele mais do mesmo que vivia. E, nesse sentido, o encontro com Liv Ullmann foi uma resposta dupla. Ao mesmo tempo, ele renova a crença do amor e tem um encontro de almas, porque pensavam muito parecido artisticamente. Adoro o filme. Fiz uma pesquisa bem profunda na época em que produzi uma exposição sobre ele, lá na ilha. Exposição que trouxe ao Brasil, numa parceria com a Mostra de São Paulo e o Itaú Cultural. É um dos Bergmans mais geniais.
A exposição sobre Persona foi uma das cinco grandes mostras organizadas por Helen em sua gestão no Bergmancenter. Também teve uma dedicada ao diretor de fotografia Sven Nykvist, parceiro de Bergman em 25 longas, e a referida sobre O Sétimo Selo, esta uma criação multimídia que envolveu artistas audiovisuais, escultores e modeladores digitais em 3D para recriarem o ambiente medieval do filme. Seu último projeto na instituição ganhou forma no mês passado. Para celebrar o centenário do cineasta, apresentou uma instalação que permite fazer uma visita em realidade virtual pelo interior da Hammars, a residência principal do diretor em Farö.
O documentário Bergman – 100 Anos reforça que a percepção de que Bergman falou mais de si nos seus filmes do que na sua autobiografia Lanterna Mágica.
– A Liv Ullmann fala que o Bergman colocava tudo nos filmes. Seus longas são transposições de episódios que viveu. Mas não concordo que Lanterna Mágica não seja autobiográfico o suficiente. Sabe aquele ditado "cada conto aumenta um ponto"? Existe uma coisa que é o passado, e outra que é a lembrança que a gente tem do passado.
O documentário também aborda outras características atribuídas a Bergman: um gênio misantropo obcecado pelo trabalho que negligenciou os nove filhos e teceu sua vida afetiva num emaranhado de mulheres e amantes – incluindo as atrizes de seus filmes.
– Com isso não concordo de forma alguma. Ele não tinha nada de misantropo. Era apaixonado pelos seres humanos, mas com muita dificuldade para lidar com eles. São duas coisas diferentes. Se você vir todos os depoimentos de suas ex-esposas, parceiras, atrizes com quem teve relacionamentos e da maior parte de seus filhos, todos falam do Bergman com muito afeto, muito amor. Então, alguma coisa ele fez certo, ainda que a leitura que se faça é a dele como uma pessoa muito ausente. Tinha um equilíbrio que é um pouco negligenciado pelo retratos que fazem dele. O fato de ter terminado a vida na ilha sozinho foi um triste acaso do destino, porque a mulher que ele escolheu para passar o restante da vida com ele (Ingrid von Rosen) faleceu 10 anos antes.
Em meio à celebração ao centenário de Bergman, Helen exalta a perenidade da obra do realizador. E, em uma era em que todos parecem ter certeza de tudo, seus filmes servem, digamos, como um balizador fundamental para que as interrogações que movem o homem e transformam o mundo desde tempos ancestrais permaneçam acesas:
– Os filmes do Bergman são muito mais sobre a dúvida, sobre a zona cinzenta. A razão pela qual ainda existe interesse por sua obra é que ele fala de temas atemporais: amor, maternidade, ódio, morte. E faz isso de uma forma clássica, tanto estética quanto estilisticamente. Nunca aderiu a nenhum modismo, então a obra dele não envelheceu ou envelheceu muito bem. As novas gerações sempre podem se identificar com Bergman porque ele fala sobre o sofrimento do ser humano, da dificuldade de se estar vivo. Esses sempre vão ser temas de interesse.
Para lembrar
Um dos maiores artistas do século 20, Ingmar Bergman nasceu em Upsália, cidade sueca de 217 mil habitantes que fica 70 quilômetros ao norte de Estocolmo. Iniciou a carreira na capital do país, primeiro no teatro, em seguida produzindo filmes em ritmo acelerado (mais de um por ano) a partir de 1945. Seu primeiro longa-metragem de impacto foi Monika e o Desejo (1951), influência marcante para a nouvelle vague francesa – foi de Jean-Luc Godard, a propósito, uma das frases definitivas sobre o mestre vindo da Suécia: "Para Bergman, estar só é se fazer perguntas; filmar é encontrar as respostas".
Prolífico
Bergman dirigiu 170 peças e 56 filmes, entre os quais O Sétimo Selo (1956), Morangos Silvestres (1957), A Fonte da Donzela (1959), O Silêncio (1963), Persona (1966), Gritos e Sussurros (1972), O Ovo da Serpente (1977), Sonata de Outono (1978) e Fanny & Alexander (1982).
Ele e seus longas receberam oito Oscar. Ganhou prêmios nos festivais de Veneza, Berlim e Cannes – é até hoje o único honrado com a Palma das Palmas, distinção honorífica máxima do evento francês. Suas principais musas foram Harriet Andersson, Bibi Andersson e Liv Ullmann. Em cinco casamentos, teve nove filhos.
Para ver em casa
Mais de 40 filmes de Bergman foram relançados em DVD pelo selo Versátil. Os canais pagos Telecine Cult e Curta! exibem, ao longo deste sábado, filmes de e sobre Bergman.
Para ver no cinema
Produzido para celebrar o centenário do diretor, o documentário Bergman – 100 Anos, de Jane Magnusson, pode ser visto em sessões de pré-estreia na Capital neste sábado, no Espaço Itaú, às 21h, e no Guion Center, às 22h. O filme entra em cartaz na próxima quinta-feira. A Cinemateca Capitólio exibe até domingo uma mostra com cinco clássicos do diretor em versões restauradas. A seguir, confira a programação:
12 de julho (quinta)
- 19h30 – Sessão de abertura: Persona + debate
13 de julho (sexta)
- 16h - Gritos e Sussurros
- 18h - Morangos Silvestres
- 20h - Sonata de Outono
14 de julho (sábado)
- 16h - Persona
- 18h - O Sétimo Selo
- 20h - Gritos e Sussurros
15 de julho (domingo)
- 16h - O Sétimo Selo
- 18h - Sonata de Outono
- 20h - Morangos Silvestres