Por Paula Ramos
Crítica e historiadora da arte, professora do Instituto de Artes da UFRGS
Sou um escultor que se apropria da materialidade da cerâmica
Sou um ceramista que se apropria dos conceitos da escultura
Sou um utilitário que se quer inútil
objeto
sou uma escultura que se quer útil
invólucro
à minha morte
É desta forma, saramaguiando no texto, que Carlos Augusto Nunes Camargo, o Carusto Camargo, conclui a escrita de sua tese de doutorado em artes, defendida em junho de 2008 na Unicamp. Sob o título Ser cerâmico, o poema expressa, em poucas linhas, uma admirável consciência do que se é e do que se busca – pelo menos “enquanto artista” –, apontando para a relação entre corpo biológico/humano e corpo do barro/cerâmico, principal eixo da sua prática e reflexão.
De 2008 a 2024, são 16 anos: o tempo de uma geração. As gerações têm suas marcas de mudança, e bem sabemos que tudo muda, o tempo todo. No entanto, a essência dos versos continua vigorosa para Carusto, como uma conquista da maturidade. É essa plenitude que ele nos oferece na exposição Terrosos, na Ocre Galeria, abrangendo o mesmo arco temporal de 16 anos.
Ali estão as escultóricas e misteriosas “urnas totêmicas” (2006-2007), desenvolvidas ao final do doutoramento e que estabelecem uma relação de escala com o artista, ao mesmo tempo em que referenciam as urnas funerárias em barro, tão marcantes entre culturas indígenas pré-colombianas da Bacia Amazônica e dos Andes.
Ali estão, igualmente, obras resultantes do estágio pós-doutoral junto à Universidade de Lisboa (2014). Executadas a partir de um torno mecânico, elas têm as bases circulares e apresentam ora as faces internas, ora as externas, trabalhadas; ora alusões a elementos arquitetônicos da região do Alentejo, em Portugal (janelas e passagens), por subtração ou escoamento de matéria; ora alusões a elementos do corpo humano (umbigo e mamilo), por modelagem e adição de matéria. Silentes, algumas têm o sugestivo título de Entorno de um corpo, remetendo ao centramento do corpo do oleiro diante do torno e da relação que ele estabelece com esse outro corpo, o cerâmico. Torno/entorno/tornar-se.
Ali estão, ainda, objetos produzidos nos últimos dois anos, que afrontam a ideia corriqueira associada à cerâmica: seu caráter utilitário. Os potes de Carusto têm furos e fissuras; as moringas exibem um bocal mínimo, disfuncional; os vasos sugerem a ação da gravidade e os embates do artista na modelagem, abrindo-puxando-afinando as massas de um lado para o outro, virando as peças de ponta-cabeça duas, três, muitas vezes. Todos evocam, de algum modo, questões perenes para o ceramista: discutem a ambiguidade entre volumes externos e o vazio interno; revelam o fascínio pela superfície, explorada por meio de rugosidades, incisões, acréscimos, impressões, aparências sensuais e acetinadas; apontam para as suas grandes referências: Victor Brecheret, Henry Moore e Constantin Brancusi, que investigaram os valores escultóricos e os processos de síntese formal e simbólica.
A história de Carusto com a cerâmica rende boas reflexões. Ele estava às portas dos 40 anos quando corajosamente abandonou uma bem-sucedida carreira como engenheiro eletricista e professor de matemática para se dedicar às artes visuais. O disparador foi um convite de “Dona Pituca” que, um dia, saindo para a aula de cerâmica, provocou o filho.
– E eu fui. Imagina: um marmanjo indo à aula com a mamãe...
Geminiano curioso, inquieto e obsessivo, moldou-se ao barro, que lhe ofereceu um ambiente de repouso e potência criativa, no qual encontrou a si próprio. Em pouco tempo estava conversando com Lalada Dalglish, Megumi Yuasa e sobretudo, Luise Weiss, sua orientadora na pós-graduação, que lhe desafiou a pensar acerca do lugar da arte e do artista na sociedade. A compreensão e o sentimento diante do papel fundamental dessas trocas o levaram à docência.
Professor do Instituto de Artes da UFRGS desde 2007, Carusto Camargo busca incutir esse entusiasmo entre os estudantes, estimulando-os a encarar seus desejos, lutar pelas coisas nas quais acreditam e desafiando-os a expandir o campo da cerâmica, em diálogo com outras linguagens, como a gravura, a pintura e a fotografia. Nessa transversalidade, frequentemente recorda, principalmente pela ação, de algo telúrico e primordial, que nos conecta não somente à tradição judaico-cristã, mas à própria história da humanidade: do barro viemos, e a ele, real ou simbolicamente, retornaremos.
Terrosos
Em cartaz na galeria Ocre (Rua Demétrio Ribeiro, 535), em Porto Alegre, Terrosos apresenta a produção de Carusto Camargo. A visitação se estende até o dia 30, de segunda a sexta-feira, das 10h às 18h, e aos sábados, das 10h às 13h30min. Na próxima quarta, dia 27/3, às 18h30min, haverá uma conversa com o artista no local. Entrada franca.