Por Guilherme Mautone
Doutor em Filosofia, diretor cultural do Remanso – Instituto Cultural, presidente da Associação Chico Lisboa, editor da revista PHILIA
Para muitos, parecerá um mero truísmo afirmar que não existe arte sem os artistas. Afinal, são eles que a produzem e são eles os principais responsáveis por trazê-la ao mundo. No entanto, por trás dessa aparente obviedade, há também uma disputa conceitual que subverte o óbvio. Desde os anos 1960, depois dos intrigantes ready-mades de Duchamp e das famosas caixas de esponja de aço ensaboadas Brillo de Andy Warhol, a arte passou a dissolver suas características peculiarmente aparentes e seus efeitos em nossa subjetividade por sobre contextos cada vez mais próximos da vida cotidiana. A reputada esfera de total autonomia da arte passa, assim, a ser problematizada como uma narrativa um tanto enganosa, e a heteronomia artística, enfim, pode a ser entendida como uma possibilidade. Arte e vida se encontram mais uma vez na contemporaneidade.
Junto desse processo, o lugar de centralidade dado aos artistas desde o Renascimento também passa a ser problematizado. E se reconhecem os muitos outros agentes responsáveis pela circulação, pela difusão e pelo consumo das coisas artísticas, formando um grande sistema próprio, uma intrincada cadeia produtiva com suas regras e lógicas, um mundo da arte, conforme indicaram pensadores como Arthur Danto, Howard Becker, Pierre Bourdieu e também Maria Amélia Bulhões. É, portanto, a partir dos anos 1970 que a história, a teoria e a crítica de arte passam a descentrar os artistas de seu lugar de total protagonismo.
Hoje vivemos, em certa medida, uma agudização desse processo. E sua descrição, ao sabor da análise sociológica, poderá ser cruel quando verificamos que os agentes do mundo da arte capazes de determinar qual arte poderá ser exibida, apreciada, debatida (e também comprada…) não são mais necessariamente os próprios artistas. Estes, aliás, podem pouco diante do estereótipo do grande curador ou do grande galerista. E essa situação ganha contornos ainda mais tristes quando consideramos o Brasil, à margem do mercado internacional de arte e, portanto, em larga medida, dele elidido para além de nomes que se contam nos dedos de uma só mão. Existem incontáveis artistas visuais no Brasil, mas apenas uns poucos vivem dignamente de seu próprio trabalho artístico, precisando desempenhar inúmeros outros trabalhos para sua subsistência. É o que o artista e pesquisador Ricardo Basbaum chamou, perspicazmente, de “artista-etc”. Sei que a mensagem é triste, mas não matem o mensageiro.
Como fazer algo, ainda que pequeno diante da escala global, para tentar mudar um pouco as coisas? Como agir localmente? Como devolver um pouco do velho protagonismo aos artistas, reconhecendo ainda assim, de modo contundente, embora crítico, a complexidade da nossa situação contemporânea? Como voltar a rescentrar os artistas, entendendo-os também como educadores, formadores, inventores e agentes da cultura, e não apenas como meros produtores de coisas para ocuparmos nossas paredes e salas vazias?
Um caminho, talvez, seja desacelerar. E essa é, em certa medida, a proposta do Remanso – Instituto Cultural; uma nova casa da arte que acaba de abrir suas portas em Porto Alegre. A missão principal do instituto é conceder gratuitamente espaços de trabalho (ateliês) para artistas em início de trajetória, junto a uma bolsa de fomento à produção artística. Por seis meses, prorrogáveis por outros seis, os artistas passam por uma experiência de desaceleração, em que podem se dedicar de modo quase integral à produção artística, aproximando-se de outras atividades típicas do mundo da arte. A expectativa é a de que, nesse tempo, os artistas possam voltar a produzir, criar, inventar, fazer circular ideias, sem que estejam premidos pela roda-viva da vida.
Remanso, no dicionário, é a porção de água que, no mar ou no rio, penetra no recorte curvo da margem e forma uma enseada tranquila e sossegada. O novo instituto pretende-se, assim, como um lugar de sossego para que artistas coloquem a arte em primeiro plano e se dediquem a ela.
Saiba mais
O Remanso – Instituto Cultural, novo espaço artístico de Porto Alegre, apresenta como uma de suas atividades iniciais a exposição coletiva Mão de Obra?, com curadoria de Izis Abreu e Guilherme Mautone. Focada em arte contemporânea e nas relações que a produção visual estabelece com a noção de trabalho, seu mundo e seus contextos, a mostra tem, entre os artistas participantes, Leandro Machado, Virginia di Lauro, Henrique Pasqual Santos, Lia Braga, Silvana Rodrigues, Frente 3 de Fevereiro, Biblioteca da Vila, A Minha Empregada e zarro, entre outros. Visitação até 21 de junho, de segunda a sexta-feira, das 9h às 17h. Entrada gratuita.