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Por André Venzon
Artista visual, curador e gestor cultural
A obra de Paulo Corrêa traz evidências e recordações sofridas, sufocadas no correr do último século, que vêm agora cobrar seu tempo, pondo em curso o passado e o presente em um verdadeiro quadro de revisionismo vivo. Somos convocados a transformar de maneira densa e corajosa conceitos e comportamentos à luz dos processos decoloniais recentes que se insurgem contra o desgaste emocional de um racismo endêmico.
O artista nasceu em 1965, em Pelotas, cidade que no início do século 19 tinha quase metade da população escravizada, o que assegurou o ciclo econômico do charque, possibilitou o surgimento de estancieiros ricos e a construção, em 1834, por exemplo, do primeiro teatro brasileiro, o Sete de Abril. Portanto, é justo apontar que as fundações culturais desse lugar estão assentadas também sobre a mão e a “alma-de-obra” subjugada.
Passados mais de cem anos da abolição, vimos surgir o artista, na década de 1980, desde cedo ativista no movimento negro. O advento do Dia Nacional da Consciência Negra, criado em 20 de novembro de 1971 pelo Grupo Palmares, em Porto Alegre, só depois de longa e árdua luta obteve aprovação pelo Senado em 2003 e entrou no calendário escolar a partir da sanção da Lei 10.639, que obriga o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas.
Atualmente, instituições – cuja parcialidade frente às questões sociais emergentes ainda prejudica a representatividade de pessoas negras – estão tendo oportunidade de refletir de maneira sensível e afirmativa sobre a complexidade do racismo estrutural na sociedade e, especificamente, no sistema das artes. Se a antropofagia do início do século 20, de Macunaímas e Abaporus, rompeu o silêncio estético de uma brasilidade moderna, plural e miscigenada, o século 21 principia sob a ameaça de um corpo social e institucional ainda doente, que se insurge contra o mal da desigualdade e das injustiças sociais, resistindo a uma mortal violência que saqueia a alma humana.
O punho cerrado, símbolo da luta antirracista, expressa as condições simbólicas de uma ideia profunda sobre a unidade, a força e o orgulho do povo negro. Na obra Resistência (2022), produzida a convite do Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul (MACRS) e exposta durante as comemorações dos cem anos do Palácio Piratini, o artista tatua na pele da sua pintura as esfinges de 10 personalidades afro-gaúchas. Ao fazer isso, mais do que homenagear essas presenças, inaugura o acesso público no campo da arte à história desses criadores e heróis, encarnando os seus anseios e valores na contemporaneidade.
Entre as colunas da Casa de Cultura Mario Quintana, ergue-se, agora, nova estrutura, um pilar permanente feito de verdade e das vidas sublimes que marcam também as mais de cinco décadas de criação do Dia da Consciência Negra. O olhar do artista, ao estudar e retratar essas referências, nos guia a um intenso conhecimento de nós mesmos e da sociedade brasileira, nos fazendo testemunhar, na figura do seu punho em riste, pela carne e pelo espírito aguerrido da sua obra, a fisionomia inabalável que resplandece vitoriosa na fronte do príncipe Custódio, do marinheiro João Cândido, do cantor e compositor Lupicínio Rodrigues, da mestra griô Sirley Amaro, da primeira mulher negra vereadora de Porto Alegre, Nega Diaba, do babalorixá Boto, da pedagoga e escritora Maria Helena Vargas da Silveira, do poeta e escritor Oliveira Silveira, do músico César Passarinho e da atriz Dandara Rangel.
São essas faces, a soma de suas identidades, que dão o caráter de unidade no corpo de um artista que busca a pluralidade no entendimento de sua própria essência. Assim, o artista afirma em sua obra que a história é feita pela diversidade de sujeitos e pelo vigor dos gestos que erguemos no mundo. Em meio a desafiadoras mudanças climáticas e guerras, não nos basta a ideia de restituirmos a relação de respeito com a natureza ou a paz. Precisamos crer num futuro realmente para todos, que o amanhã, venha a nos pertencer por inteiro, de fato e de direito.
Nos trabalhos de Paulo Corrêa, o negro é afirmado pelo seu aspecto físico e espiritual, de modo não passivo ou, até mesmo, combativo. O artista demonstra que é preciso nos libertar da ignorância que aprisiona mentes e corpos, para adquirir uma consciência que complete nossas forças enquanto seres humanos, uma consciência negra, plural e convergente.