No mais novo livro da escritora gaúcha Taiasmin Ohnmacht, Uma Chance de Continuarmos Assim (Diadorim), duas universitárias negras usam uma máquina do tempo que lança uma delas para o futuro. Neste tempo-espaço, há uma disputa entre dois grupos, sendo que um deles acredita em um biotipo ideal de humano — que é branco — e o outro, miscigenado, entende que somente o resgate do que é ancestral levará à salvação da humanidade.
O livro traz elementos que alicerçam o afrofuturismo, uma corrente de pensamento do movimento negro que vem ganhando espaço em diferentes áreas do conhecimento, passando pelas artes, pela política e pela ciência. Resumidamente, é a crença de que um futuro mais esperançoso para toda a humanidade passa pela valorização da cultura afro-diaspórica, ou seja, povos negros espalhados por todo o mundo.
— Meu livro é uma obra que se encaixa na categoria afrofuturismo, porque imagina um futuro ancestral. Ou seja, pensa uma possibilidade utópica, e essa utopia diz respeito a valores ancestrais, como vida em comunidade, integração com a natureza, tecnologias ancestrais, como a dança. Há uma cena do livro onde há uma disputa diplomática em forma de dança — conta Taiasmin, também autora de Vozes de Retratos Íntimos (Taverna, 2021).
O termo foi usado pela primeira vez pelo jornalista cultural americano Mark Dery durante uma entrevista concedida na década de 1990. Falando sobre a presença de artistas negros na cultura pop, ele diz o seguinte: "A ficção especulativa que trata de temas afro-americanos e que lida com essas preocupações no contexto da tecnocultura do século vinte - e, mais genericamente, a significação afro-americana que se apropria de imagens da tecnologia e de um futuro provavelmente aperfeiçoado - pode, por falta de um termo melhor, ser chamada de "Afrofuturismo".
Embora seja um movimento relativamente recente e ainda em construção, há elementos constitutivos para que uma obra artística seja considerada afrofuturista: ser produzida por uma pessoa negra; ser protagonizada por pessoas negras; investir na fantasia e na ficção científica, ou seja, deslocar a história no tempo-espaço; e, por fim, valorizar elementos da cultura afro.
Embora haja discordâncias quanto a flertar com a ficção científica, são nesses conceitos que o escritor e editor Israel Neto se baseia para organizar as publicações da Kitembo Edições Literárias para o Futuro, editora criada em 2018 em São Paulo e que só publica obras afrofuturistas.
— A literatura fantástica e a ficção científica têm o poder de discutir temas presentes, mas utilizando outros cenários. O afrofuturismo vai conectar elementos da ancestralidade, da cultura negra, da tecnologia e de pensar um futuro. Mas é uma coisa nova, por isso alguns conceitos estão se definindo — reconhece Neto, autor de Amor Banto em Terras Brasileiras (Kitembo, 2018).
No Brasil, o primeiro livro considerado afrofuturista é O Caçador da Rua Treze (2017), de Fábio Kabral, que conta uma história fantástica usando elementos da mitologia Iorubá, uma das maiores etnias africanas. Segundo Israel Neto, é justamente a aposta na fantasia ou na ficção científica o que diferencia uma obra afrofuturista de uma tradicional obra produzida por uma pessoa negra.
— O afrofuturismo foge dos cânones inclusive da literatura negra. São autoras e autores negros que não estão fazendo só poesia, só romance, só ficção realista, mas disputando o imaginário por meio da literatura. O conceito pode flertar com a fantasia e com a ficção científica, usando elementos da cultura afro. Se a tecnologia é um elemento do futuro, então a comunidade negra também precisa se apropriar dela — argumenta.
Quando se fala em afrofuturismo, vem à mente o blockbuster Pantera Negra (2018), protagonizado por um ator negro (Chadwick Boseman), que vive o herói T'Challa, líder do reinado de Wakanda, uma nação negra constituída de forma bastante avançada, inclusive tecnologicamente.
Esse futuro positivo para o povo negro é algo pretendido pelo afrofuturismo, mas há quem desconsidere que o filme faça parte dessa corrente porque o personagem foi criado por brancos: Stan Lee e Jack Kirby, artistas da Marvel.
— A literatura afrofuturista tem que ter uma autoria negra, além de fazer resgate da cultura negra e de investir no protagonismo negro — defende Juliane Vicente, dançarina e escritora de Porto Alegre, integrante do grupo Afro-Sul Odomode.
Autora do conto Sankofa, que retrata uma rainha negra que terá de enfrentar uma ameaça que se abate sobre seu povo, Juliane se considera artista afrofuturista há cinco anos. Ela discorda que uma produção artística precisa ser do gênero fantasia ou ficção científica para fazer parte do movimento. Mas entende que vislumbrar possibilidades para o personagem negro que vão além do tradicional contexto de racismo é uma forma de projetar, na literatura ou em qualquer linguagem artística, outros futuros para a população negra.
— O afrofuturismo muitas vezes pode trabalhar com o futuro, com a ficção científica, mas também quer falar de histórias que vão além das narrativas de dor, violência e racismo que sempre são atrelados à vivência da pessoa negra. O amor, a felicidade, o bem-estar: essa pluralidade também é importantes neste movimento.
O afrofuturismo é uma chance de os negros sonharem com uma vida que ainda não foi alcançada. Nesse sentido, a expressão cai como uma luva, considera Israel Neto.
— É um termo bom, porque o futuro sempre foi negado para nós, negros. Ter a possibilidade de pensar o futuro é algo fantástico. Então não faz sentido que eu escreva uma obra de ficção onde daqui 200 anos os negros estarão ainda sofrendo com problemas raciais. O afrofuturismo tem uma pegada utópica, positiva e esperançosa. Faz a projeção de um futuro onde a violência não será a tônica para a população negra.