Por Icleia Cattani
Crítica e pesquisadora da História da Arte
O termo “exercício” contém o verbo exercer, cuja definição é colocar em prática ou desempenhar as funções inerentes a um ofício. Ora, se há práticas nas quais a arte contemporânea persiste como ofício são as que possuem uma longa história: pintura, desenho, escultura e gravura. Essas ainda são realizadas, pelo menos em parte, com meios, materiais e técnicas tradicionais, em diálogo com linguagens mais recentes: fotografia, vídeo, instalação. Aparecem novos suportes como o metal e a fórmica; à tinta a óleo, acrescenta-se a acrílica e outros pigmentos. Os novos materiais e técnicas trouxeram mudanças ao ato de pintar, por suas características físicas, gerando processos e efeitos formais inéditos.
As pinturas presentes na mostra Entre o Mergulho e a Distância, na galeria Bolsa de Arte, foram realizadas por seis artistas, com carreiras consolidadas e majoritariamente professores universitários: Clóvis Martins Costa, Felipe Góes, Lauer dos Santos, Lizângela Torres, Marilice Corona e Ricardo Mello. Eles compõem um grupo ligado ao projeto de pesquisa Problemas de Pintura: Distensões na Prática da Pesquisa em Arte, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). A realização de suas obras pessoais é fundamentada pelas reflexões individuais e em grupo, enriquecendo e problematizando o já realizado, levando a novas reflexões e aprofundando suas vinculações com o fazer pictórico. As atividades pessoais e coletivas levam a exercícios e experimentações livres com formas, materiais e técnicas, gerando obras novas e, às vezes, muito diversas das realizadas anteriormente.
Os exercícios de pintura, nessa pesquisa coletiva que é prática, teórica e reflexiva, permitem aos pintores um verdadeiro exercício da liberdade criativa, longe dos imperativos sociais, econômicos e artísticos que podem tolher o artista, exigindo a continuidade de uma produção que já não corresponde às suas inquietações. Essa mostra não é regida pela “coerência” (no sentido de uniformidade) de poéticas que identifiquem sem erro cada pintor, como ocorre em muitas exposições que exibem um período ou uma fase do trabalho de um artista. Aqui, o fio condutor é constituído pelas variações que produzem novos sentidos, de um conjunto de telas ao outro; ou seja, os resultados materiais dos exercícios de pintura, com seus experimentos.
Alguns artistas optaram por evidenciar elementos dos seus processos, enquanto outros só mostram as mudanças nas próprias pinturas, deixando claros os diferentes resultados alcançados por cada um. Essa mostra ocorre pela terceira vez (as duas primeiras foram em Pelotas e Florianópolis), mas, ao mesmo tempo, é nova, pois, trazendo à luz os seus processos, os pintores acrescentam novas obras, retiram outras já expostas e estabelecem novos diálogos produtivos entre seus próprios trabalhos e os dos demais membros do grupo. A montagem é realizada pelos artistas, em diálogo entre si; é uma continuação dos debates, um novo momento em que a reflexão plástica se desenvolve e se aprofunda pela conversa estabelecida pelas próprias obras, em suas semelhanças e diferenças, em suas constâncias e variações. Os olhares dos artistas percebem as aproximações formais ou técnicas, que podem ocorrer por um momento, antes das trajetórias das produções afastarem-se novamente. Não podemos esquecer a importância dos diálogos entre obras na história da arte, como o das pinturas de Picasso e Braque no início do século 20, quando o cubismo ainda era puro exercício experimental e sequer tinha nome.
Ao ver essa mostra, minha impressão foi de uma sinergia semelhante, mas com outros focos. Para além das temáticas presentes, nas quais as paisagens naturais são maioria, além de espaços fechados e imagens reproduzidas de aparelhos tecnológicos, e apesar de uma cena cotidiana no espaço urbano, o que predomina é a dramaticidade dos espaços vazios, a ausência humana, as cores escuras de ambientes noturnos; mesmo em algumas telas abstratas, predomina a escuridão.
A arte evidencia o que se vive no presente. Nesse momento, imperam grandes incertezas sobre o futuro da humanidade. O colapso ecológico mundial, as guerras de uma brutalidade inaudita, o abismo cada vez maior entre ricos e pobres, a tragédia política que vivenciamos recentemente e que se repete em outros países são temas que, embora talvez nunca abordados no grupo, permearam o clima criado nas obras. Talvez fosse mais correto dizer o clima que emergiu das obras, pois não há como ignorar o papel do inconsciente na criação artística, premonitório na medida em que capta os signos do presente que indicam o que está por vir.
Entre o Mergulho e a Distância
Criações dos artistas e professores que integram o projeto de pesquisa Problemas de Pintura: Distensões na Prática da Pesquisa em Arte, ligado à UFPel. Na galeria Bolsa de Arte (Rua Visconde do Rio Branco, 365), em Porto Alegre. Visitação até 22/12, de segunda a sexta-feira, das 10h às 18h, e aos sábados, das 10h às 13h30min. Entrada gratuita.