Por André Severo
Artista visual, produtor e curador
Alexandre Moreira, Navarro Moreira, Autacom, Alexandre Navarro Moreira: algumas das personas que meu amigo – meu irmão de quase toda a vida – criou como nuances de sua identidade como artista. Muito mais do que variações circunstanciais de seu nome, todas essas personas – que surgiam ou se apagavam a cada novo ciclo de trabalho – estavam ligadas a projetos específicos na sua trajetória.
Flutuações de uma personalidade inquieta – “quase esquizofrênica”, como ele dizia –, essas identidades espelhavam (sempre de forma fragmentada, fugidia, episódica) a relação de Alexandre com a arte, com a vida, com a paisagem urbana de Porto Alegre e, principalmente, com o outro. Ele entendeu, desde cedo, que, para sermos quem somos, precisamos também ser o outro. E, como seres sociais, interagimos e somos interdependentes da diversidade. “A criação se constituiu, para mim, como uma chance de estar aqui, comigo mesmo e com os outros”, declarou o artista.
Sempre buscando afirmar sua identidade e marcar poeticamente sua passagem pela existência, a obra de Alexandre parece ter sido erguida para sublinhar sua convicção de que, substancialmente, não existem fronteiras entre nós e o mundo. Para ele, nunca houve distinção entre interior ou exterior, corporal ou espiritual, real ou parafactual, conteúdo ou continente: tudo na obra de Alexandre foi estatuído para pontuar que nos encontramos unidos, somos contíguos. Não habitamos a realidade simplesmente, pois, desde que somos, somos a própria realidade. E o real, bem como todas as suas frações parafactuais, é também constituído por aquilo que somos.
A experiência com a arte, para Alexandre, tornou-se “necessária como estratégia de sobrevivência”. Através de pinturas, desenhos, filmes, instalações, ações e intervenções urbanas, ele erigiu sua poética no avesso dos sentidos, no fora de lugar das imagens, das formas, dos pensamentos e das acepções. O que importava para o artista não era a materialidade visível, tampouco a permanência, mas sim a travessia convulsiva do espaço simbólico: “Assim como a vida, o trabalho é sempre uma passagem”.
Mais um sentimento e menos uma substância: foi com Alexandre – nas conversas intermináveis e inconclusivas que tivemos ao longo dos 35 anos em que convivemos – que entendi que a criação artística se inicia como uma contração violenta e involuntária na linguagem; que, em essência, nada pode ser captado a não ser pelos olhos, pela boca, pelos ouvidos ou pelos poros e que, no limite, qualquer ato de instauração poética consiste no descuramento da palavra.
Foi também com ele que percebi que algo semelhante ocorre com as imagens: elas são concretas e corpóreas tanto quanto são espirituais e intencionais. Para Alexandre, o sensível não estaria nem dentro nem fora de nós, não seria nosso teor nem nossa sucessão. As imagens são o que somos, fazem parte de nosso ser; são o nosso próprio ser, e é justamente por serem parte de nós que elas se configuram também como parte do mundo e caracterizam, em essência, a outridade.
De fato, todo o projeto poético do artista parece querer evidenciar que as imagens não representam o mundo e nem nos representam individualmente; menos do que para revelar alguma sombra da realidade, o sensível somente nos acomete para nos arrancar da ilusão da existência de um eu individual. Toda imagem é uma convocação, e qualquer incisão produzida pelo sensível, mesmo que acidental, abre uma brecha não consistente na realidade. E é nessa brecha que o real absorve oxigênio, que o pensamento respira, que a linguagem se evade, que enxergamos o outro. É através do sensível que guardamos o condão de nos percebermos distintos – e assim nos tornarmos, ao mesmo tempo, este e aquele, iguais e diversos.
Para Alexandre, as imagens sempre foram espelhos. E, menos do que uma visão, o que o artista esperava das imagens é que, de alguma forma, elas se despedaçassem, se tornassem opacas, precipitassem seu esgotamento, se demonstrassem reversíveis e expusessem seus avessos. Sob sua ótica, duas forças antagônicas habitariam nossas projeções: em nossa intimidade mais obscura – aguardando o regresso da palavra –, a sede de morrer, de se despojar, de realizar a travessia; em parte menos aflita de nós – espelhada no abismo das imagens – o desejo de renascer, de retomar uma utópica significação inaugural.
Muito mais do que criações originais e sensíveis, o que Alexandre produziu ao longo de três décadas de dedicação à experiência com a arte foi um convite ao diálogo. Embriagadas por seus opostos, por suas potenciais vinculações e revinculações, as formas que o artista criou para entender a si mesmo e o mundo se converteram em convites à convivência e à participação.
Alexandre nos deixou cedo demais, repentinamente demais. O vazio que ele deixa, para mim e para todos os que conviveram direta ou indiretamente com ele, é imenso. O que nos consola é a certeza de que, no fora de lugar dos significados, o artista e todos os seus interlocutores (aos quais eu me incluo como um comparsa privilegiado) continuarão engendrando, juntos, a poesia no avesso dos sentidos. Por meio dos diversos projetos participativos que criou, ele vai seguir disponibilizando suas imagens, e serão os seus múltiplos interagentes, por reconhecerem-se nelas, por identificarem-se com elas, que irão, a partir de agora, ressignificá-las e atualizá-las: vinculação com a essência da alteridade, construção conjunta de uma (im)possível realidade.