Por Eduardo Veras
Historiador e crítico de arte, professor da UFRGS, organizador do livro “Percurso do Artista – Teresa Poester” (2022)
Na célebre abertura de Ricardo III, a estação mais fria do ano aparece atada a uma insatisfação generalizada: “o inverno do nosso descontentamento”. Em seguida, o Conde de Gloucester passa a enumerar uma série de contrapontos ao sentimento invernal de tristeza e desconforto: o verão glorioso e ensolarado, o som lascivo e ameno do alaúde, o ocioso e mole tempo de paz.
Por óbvio, não se restringe a Shakespeare a oposição entre fases que, com alguma sorte, sobrepujam uma à outra. Tem aquela que se faz sombria e ameaçadora, e, depois, a que chega macia e nos deleita. O cancioneiro brasileiro está repleto de imagens do gênero. Canta Nelson Cavaquinho: “O sol há de brilhar mais uma vez/ A luz há de chegar aos corações/ Do mal, será queimada a semente/ O amor será eterno novamente”. Arlindo Cruz se queixa do violão desafinado, da pobreza das rimas e do salão vazio, logo substituídos pela promessa de que tudo ficará bom outra vez: “Nós iremos até Paris/ Arrasar no Olympia/ O show tem que continuar” (sugiro ouvir alto e na versão de Beth Carvalho). Chico Buarque narra a desventura da mulher que perdeu o emprego, largou a família e bebeu veneno, para nos premiar, na sequência, com uma saborosa conjugação de futuro: “O sol ensolarará a estrada dela/ A lua alumiará o mar/ A vida é bela/ O sol, a estrada amarela/ E as ondas, as ondas, as ondas, as ondas”.
Essa introdução meio em curva é para anunciar que também na nova exposição de Teresa Poester, na Ocre Galeria, Centro Histórico de Porto Alegre, há uma sucessão de tempos antagônicos. Se em sua última exposição na Capital, entre 2019 e 2020, na Galeria João Fahrion, na Reitoria da UFRGS, sobressaíam-se os trabalhos que evocavam inconformismo e resistência, agora predominam a alegria e a renovação. Aparece ainda um desenho todo em vermelho, a exemplo das séries que configuravam o clima na mostra anterior: Grito Mudo, Rouge Brésil e Até que Meus Dedos Sangrem. O forte, porém, na individual da Ocre, é o uso generoso das cores. O vermelho ganha a companhia de pigmentos azuis, verdes, violetas, algum amarelo, preto. Entre o desenho de observação e o improviso dos gestos, entre a paisagem natural e a abstração livre, despontam as nuances alargadas da primavera. Teresa volta aos jardins, que já foram tema, pretexto e fonte de pesquisa em diferentes momentos de sua trajetória.
Dessa vez, a dimensão expansiva dos desenhos, a sobreposição de traços feitos a mão em fotografias, a opção por um viés instalativo, em que o conjunto persegue a unidade, tudo parece sublinhar o desejo de celebração. A mostra, intitulada Furta-cor, ecoa o tom cambiante das cores primaveris, oscilando ao ritmo das luzes da Normandia (desde os anos 1990, Teresa se divide entre Porto Alegre e a pequena cidade francesa de Éragny-sur-Épte, onde viveu o mestre impressionista Camille Pissarro). O advento da nova estação emula, se quisermos, a velha marcha-rancho de Paulo Soledade (perdoem, por gentileza, minha fase de insistentes analogias poético-musicais). Nos versos de Estão Voltando as Flores, o compositor paranaense, recém-recuperado de uma cirurgia, em dezembro de 1960, fazia as pazes com a própria existência: “Vê, as nuvens vão passando/ Vê, um novo céu se abrindo/ Vê, o sol iluminando/ Por onde nós vamos indo”.
Não deixa de ser curioso que Teresa, em conversa familiar, ao apresentar seus trabalhos recentes, manifeste alguma desconfiança. Suspeita a artista que a reconciliação com as cores seja percebida como repetição. Nenhuma insegurança nesse receio. O incômodo diz respeito, antes, à vontade de não reafirmar o que já conhece, o que já domina. Compreendo, mas penso que não há motivo para esse autoquestionamento. A inquietude, no caso de Teresa, tem sido parceira constante ao longo de 45 anos de práticas continuadas no campo da arte: ela se faz evidente não apenas na sorte de rabiscos emaranhados, curtos e nervosos, que tensionam certas harmonias do jardim. Cabe lembrar que também as retomadas são esforços admiráveis de reinvenção e alerta. Nos recordam que há de se manter viva a atenção às ameaças de retorno do inverno do nosso descontentamento.
Furta-Cor, de Volta aos Jardins – Desenhos de Teresa Poester
Trabalhos inéditos, em grandes dimensões (ao lado, “Jardins de Eragny”). Na Ocre Galeria (na Rua Demétrio Ribeiro, 535, Centro Histórico), em Porto Alegre. Abertura neste sábado (3/6), das 11h às 14h. Visitação a partir desta segunda-feira, até 1º de julho, de segunda a sexta-feira, das 10h às 18h, e aos sábados, das 10h às 13h30min. A entrada é franca. Outras informações em ocregaleria.com.br.