Por Ricardo Resende
Diretor do Museu Bispo do Rosário (RJ)
O Museu Bispo do Rosario guarda o arquivo mais importante já feito no nosso país, um arquivo diferente de todas as tipologias existentes nos museus tradicionais. Um grandioso arquivo poético das coisas do mundo acumulados pelo artista manicomial que viveu na antiga Colônia Juliano Moreira, Arthur Bispo do Rosario (Japaratuba-SE, 1909 - Rio de Janeiro-RJ, 1989). Além da obra desse artista magistral de grande complexidade de conservação, também abriga os arquivos documentais federais dos hospícios do Rio de Janeiro e da antiga Colônia Juliano Moreira, o Dinsan e o do IMASJM. E não poderia deixar de informar do arquivo vivo que são as pessoas que fazem daquele museu, um museu de verdade e essencial para a zona oeste do Rio de Janeiro. São os artistas do Ateliê Gaia e as pessoas que frequentam hoje as exposições, os usuários da saúde mental que participam das diversas atividades que o mBRAC promove, como formas de convívio e educação. O exemplo maior dessa atividade é o Programa de Geração de Renda, voltado para os usuários da saúde mental. Nesse programa, entre eles, o Bistrô B, a Loja B, o Arte Horta, o Arte e Costura e o Bloco Delírio Tropical, fazem da instituição um museu do cuidado e do acolhimento, feito da museologia sustentável, da arte e da inclusão.
Hoje a função museal de maior visibilidade é a de guardar, preservar, conservar e difundir a obra arquivo, o legado do aclamado artista Bispo do Rosario, mas também nos é fundamental ressiginificar esse território, um dos maiores hospícios do Brasil, através da articulação entre educação e saúde mental, tendo a arte como cuidado, consolidando o Museu Bispo do Rosario como instituição transformadora, num vasto campo de produções socioculturais efetivas, que têm a arte como ferramenta para o cuidado da saúde mental e na luta antimanicomial, sua maior bandeira.
O museu conta com a participação social na produção de subjetividades em diferentes contextos e intermediadas pelas linguagens artísticas, promovendo uma reinvenção e revalidação das ações no campo da saúde mental. Trabalho efetivo para os tempos que vivemos, tempos de uma sociedade que encontra-se adoecida depois do impacto de uma pandemia que assolou o mundo. Tempos de disseminação de mentiras difamatórias que deseducam e atormentam as pessoas. Necessitamos mais do que nunca dessa reinvenção das experiências e projetos que promovam a saúde mental e dos modos de cuidado do sofrimento psíquico, tendo a arte e a cultura como ferramentas e motores de propulsão das suas criações.
Tudo isso só foi possível ou todas essas transformações pelas quais o Museu Bispo do Rosario passou nesta última década, graças à direção geral de Raquel Fernandes, psiquiatra de carreira na função pública, que assumiu a direção da instituição em 2013. São 10 anos de gestão que, humanizada, trouxe profissionais que atuam nessa nova forma de museologia para o século 21, a que acolhe e cuida das pessoas, dos usuários da saúde, do público e dos artistas.
O avanço da reforma psiquiátrica sinalizou a urgência de atravessar os muros das instituições, reavendo a cidade. As ações culturais, educativas e artísticas tornaram-se pontos fundamentais na criação de novas práticas de cuidado e no movimento de desinstitucionalização. Os museus ligados às instituições de saúde fizeram parte das estratégias que atuaram no imaginário social para permitir novas representações sobre a loucura.
Nesse contexto, em 1982, foi criado o Museu Nise da Silveira, na Colônia Juliano Moreira. Uma homenagem à médica brasileira que marcou a história da psiquiatria. Além da salvaguarda do acervo, outro objetivo da instituição era o desenvolvimento de atividades artísticas. Sua primeira oficina de pintura foi conduzida por Gilmar Ferreira e Leonardo Lobão, artistas e usuários de serviços de saúde mental. Em 1999, a proposta se ampliou para transformar-se no Atelier Terapêutico Gaia, contando com oficinas de pintura, argila, colagem, fotografia, serigrafia, literatura e teatro para pacientes de diversos núcleos da CJM, principalmente, do Hospital Jurandir Manfredini, fechado definitivamente, no final de 2022. O último equipamento do antigo manicômio que ainda funcionava.
Nos anos 2000, após a municipalização, a CJM passou a se chamar Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira (IMASJM). Nesse momento, foram criados o Clube de Lazer, um dos precursores dos atuais centros de convivência e o projeto de geração de renda Arte Horta & Cia. para usuários dos serviços de saúde mental. Foi também nesse período que o museu mudou seu nome para Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea.
Em 2013, o museu incorporou todos os programas culturais do IMASJM através de seu novo eixo de atuação no território: o Pólo Experimental de Convivência Educação e Cultura. O Atelier Gaia, integrante do Pólo, transformou-se em um local de criação e formação, gerido coletivamente pelos seus artistas: Arlindo Oliveira, André Bastos, Clovis Aparecido, Jane Brum, Leonardo Lobão, Luiz Carlos Marques, Patricia Ruth, Pedro Motta, Rogéria Barbosa, Sebastião Swayzzer e Victor Alexandre. Com o apoio do museu, os artistas puderam ampliar suas pesquisas e práticas, favorecendo o ingresso no circuito da arte e o intercâmbio com artistas de outros contextos - em especial através de seu programa de residências artísticas: a Casa B. A imersão no universo da colônia, vivenciada pelos participantes do programa Casa B, ocorre até hoje no encontro com os conviventes do Pólo Experimental, no contato com o acervo do museu e na relação com o território. Na interface entre a arte e a saúde mental, os artistas residentes vivenciam o processo de criação em suas dimensões ética e estética, sendo afetados e se afetam, reciprocamente.
O Pólo Experimental - com suas oficinas de bordado, música, mosaico, horta, audiovisual, teatro de bonecos, dança, pilates, culinária, seu bloco de carnaval e sua rádio Delírio Cultural - transforma-se nesse amálgama, que reúne a comunidade, artistas, usuários e trabalhadores do campo da saúde mental em uma relação horizontal e desierarquizada para experimentar através da arte, bem como promover novos encontros e outras possibilidades de existência. É também como funciona a Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro, aqui em Porto Alegre, que celebra mais de 30 anos de existência. Fundado em 1990, o ateliê é um instrumento que busca fundar novos lugares para pessoas, sujeitos antes invisibilizados pelo sistema manicomial, a encontrar novamente o seus lugares na sociedade. Agora como artistas, potencializados por suas obras plásticas, de rara beleza, como podemos observar na mostra Esta Coisa que Pulsa, em cartaz no Museu da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
As potências do Museu Bispo do Rosario e da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro, estão na ampliação dos laços, no tornarem-se casas e territórios de vínculos, de criação, de transformação e dos afetos. É a arte e a cultura, sempre, como propulsoras para o convívio harmonioso da sociedade.