A forma como os artistas da imagem representam a experiência de isolamento causada pela pandemia de coronavírus estará em destaque no 14º Festival Internacional de Fotografia de Porto Alegre. Um dos principais eventos do calendário cultural do Estado, o FestFoto estreia nesta sexta-feira (23) uma edição online e gratuita que vai até o dia 28, incluindo videoexposições, lives e painéis no site e nos perfis do festival no Facebook, no Instagram e no YouTube.
Depois do dia 28, a programação segue até o final de maio nas redes sociais, abrindo espaço para artistas estrangeiros. Também haverá leituras de portfólio, que são sessões em que os fotógrafos submetem seus trabalhos à análise crítica de especialistas.
A palestra de abertura, nesta sexta (23), às 19h, contará com Sarah Meister (entrevista abaixo), curadora da exposição Fotoclubismo: Fotografia Modernista Brasileira, 1946-1964, que será aberta no dia 8 de maio no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), enfocando a atuação do Foto-Cine Clube Bandeirante de São Paulo, grupo de fotógrafos amadores reconhecido no Brasil, mas com projeção limitada no Exterior.
A partir do tema "Fotografia e Silêncio – Nuvens de Escuta", os autores selecionados pelo concurso internacional Fotograma Livre realizaram trabalhos que tematizam a pandemia. O resultado estará em videoexposições e lives com os artistas. Também participam desta edição do FestFoto o coletivo de fotojornalismo CovidLatam; integrantes da editora Lovely House, que falarão ao lado da artista Ana Sabiá; e a artista gaúcha Tuane Eggers, com o trabalho Fluxus Fungus.
Estímulo
No ano passado, a exposição estava pronta para montagem quando começou o isolamento social, e o evento precisou ser adaptado para o ambiente digital. Desta vez, a situação da pandemia no Brasil levou os organizadores a planejarem uma edição online desde o princípio.
— Neste ano, estamos mais seguros e estamos apostando que os eventos online terão maior participação do público e um espaço mais acolhedor para que os artistas exibam seus trabalhos e contem suas histórias. Para um futuro próximo, estamos desenvolvendo um projeto para ampliar o intercâmbio com artistas internacionais, aproveitando as possibilidades de conexão remota — afirma Sinara Sandri (leia a entrevista na íntegra abaixo), coordenadora-geral do FestFoto ao lado de Carlos Carvalho.
Observar uma fotografia pelo computador é uma experiência diferente do encontro presencial, mas o público nunca esteve tão familiarizado com a imagem do que hoje, na era do smartphone e das redes sociais.
— Um dos nossos grandes objetivos no FestFoto é justamente despertar o interesse, mostrar fotografia e fazer com que as pessoas sintam vontade de fotografar. Claro que estamos aptos a ajudar a fotografia brasileira a chegar nos grandes circuitos internacionais da arte, mas também queremos servir como estímulo para quem pode se beneficiar da fotografia como uma via de expressão sensível de suas questões pessoais — conclui Sinara.
Sarah Meister: "Pretendo enfocar artistas que moram e trabalham no Brasil hoje que merecem mais reconhecimento"
Curadora de uma exposição sobre fotografia modernista brasileira que será aberta em 8 de maio no MoMA, em Nova York, Sarah Meister falará nesta sexta (23), às 19h, nas redes sociais do FestFoto. Ela concedeu a seguinte entrevista por e-mail a GZH.
A fotografia modernista e o Foto-Cine Clube Bandeirante de São Paulo são temas de pesquisas no Brasil, mas talvez o público não especializado ainda não conheça esses trabalhos. O que os torna únicos?
Esse público não especializado no Brasil é, em muitas formas, similar ao público de fora do Brasil, para quem o Foto-Cine Clube Bandeirante (FCCB) e as realizações de seus membros são quase completamente desconhecidos. Isso era verdade para mim apenas uma década atrás! Essa exposição e o livro que a acompanha enfocam as fotografias consideradas mais interessantes para esta curadora baseada em Nova York em 2021, ao mesmo tempo em que evitam aquelas que parecem (a mim) imitativas ou clichês. Devemos reconhecer nossa própria cegueira às forças que influenciam nossas escolhas estéticas — forças tão invisíveis e inescapáveis como o gosto. Tento basear meus julgamentos ao contextualizar o trabalho do FCCB, ancorando minha análise nas atividades contemporâneas no Brasil, assim como em outras cidades nas Américas e na Europa. Essa pesquisa me dá a confiança de que o que eu percebo como sendo o apelo irrefutável do trabalho é de fato um ambicioso e convincente capítulo na história da fotografia (mesmo que tenha passado batido fora do Brasil).
O Foto-Cine Clube Bandeirante foi um grupo amador de fotografia. E agora vivemos em uma época na qual qualquer um com um smartphone é um fotógrafo amador. O que significa ser um fotógrafo amador hoje?
Há (pelo menos) três significados diferentes para a palavra "amador" no que diz respeito à fotografia. O mais antigo alude a fotógrafos para os quais dedicar-se à arte pela arte era um ponto de partida comum. O segundo significado surgiu no final do século 19, quando simplificações tecnológicas tornaram possível a milhões de pessoas sem formação especial ou expertise fazer fotografias. Esse grupo de amadores, claro, se expandiu exponencialmente com o advento da fotografia digital, e é o que as pessoas normalmente têm em mente quando falam de amador hoje. O terceiro sentido da palavra se refere àqueles ativos em redes dinâmicas de fotografia locais e internacionais, mas cujas reputações foram maculadas pela natureza imitativa de alguns deles. Este é o que mais se aplica ao FCCB, e argumento que seu status amador figura de forma proeminente entre as razões pelas quais esse capítulo da história da fotografia passou amplamente batido fora do Brasil.
Que outros movimentos, grupos ou fotógrafos individuais no Brasil você acredita que merecem mais reconhecimento internacional?
Após mais de duas décadas trabalhando como curadora e historiadora da fotografia, foi uma surpresa aprender um importante capítulo da história da fotografia sobre o qual eu não conhecia nada. Isso mostra os vieses e lapsos nas formas como a história é escrita, e serve como um lembrete de que simplesmente porque não conheço hoje outro movimento ou grupo no Brasil que mereça mais reconhecimento internacional, pode muito bem existir. Ao mesmo tempo, acho que o FCCB é excepcional, e sua cultura de criticidade e camaradagem forjaram um movimento criativo singularmente inventivo na história da fotografia: um que é improvável, mas não impossível, de encontrar em outro lugar. Quando a exposição se encerrar, pretendo enfocar artistas que moram e trabalham no Brasil hoje que merecem mais reconhecimento.
Sinara Sandri: "O trabalho das mulheres vem com grande força nesta edição"
Coordenadora-geral do FestFoto, ao lado de Carlos Carvalho, Sinara Sandri concedeu a seguinte entrevista por e-mail a GZH sobre esta edição do evento.
Pelo segundo ano, o FestFoto será totalmente online. No que diz respeito ao formato e à estrutura do evento, o que vocês repensaram de 2020 para este ano? E o que procuraram manter?
Em 2020, estávamos com a exposição impressa e prontos para a montagem quando começou o confinamento. Otimizamos algumas ferramentas que já usávamos, como as conferências remotas, e migramos o conteúdo das exposições para que pudessem ser visualizados em formato de vídeo, a partir da internet. Além disso, realizamos a leitura de portfólio, evento de análise individualizadas e críticas de trabalhos, em formato totalmente remoto, o que também exigiu uma série de adaptações dos artistas e dos especialistas. As soluções que encontramos foram aproveitadas por outros eventos parceiros. Quando começamos a trabalhar na edição de 2021, a situação sanitária no Brasil era ainda pior que a do começo, e isso nos levou a já optar por uma edição totalmente online.
Aprimoramos o formato das videoexibições e abrimos novas frentes de diálogo com o público universitário e iniciantes, realizando um evento totalmente pensado para quem precisa de orientação já nos estágios iniciais do trabalho.
Também consideramos ser uma forma de prestigiar e potencializar o trabalho feito nas universidades, que tiveram um ano difícil, com incertezas e distanciamento. Recuperamos nosso pioneirismo no estímulo ao desenvolvimento de uma linguagem que mescla vídeo e fotografia e abrimos mais espaço para os 20 trabalhos finalistas do Fotograma Livre, concurso internacional que promovemos anualmente. Este ano, estamos mais seguros e estamos apostando que os eventos online terão maior participação do público e um espaço mais acolhedor para que os artistas exibam seus trabalhos e contem suas histórias. Para um futuro próximo, estamos desenvolvendo um projeto para ampliar o intercâmbio com artistas internacionais, aproveitando as possibilidades de conexão remota.
Neste ano, a experiência da pandemia aparece em vários segmentos. Que leituras você faz sobre a forma como esse tema aparece nos trabalhos desta edição?
Pessoalmente, considero que a característica mais interessante da fotografia é o fato de que você precisa expor o seu corpo ao acontecimento. Mesmo quando você opta pela ponto de vista de um observador distanciado, você precisa estar ali. Não sei como será a fotografia remota, mas a que me interessa é a que carrega a marca do contato deste corpo neste acontecer. É nesse ponto que a percepção incendeia, afeta quem olha pelo "visor" e continua afetando quem olha pela tela de um dispositivo qualquer de exibição.
Por ser essa "leitura" sensível do mundo, a fotografia veicula informação de forma muito eficaz. Várias questões envolvidas na transformação deste vírus em tragédia mundial já vinham sendo tratadas pela fotografia. Esgotamento ambiental, desigualdades, crises migratórias, a violência e os bloqueios a tudo que parece fora da ordem são pautas permanentes da fotografia. A pandemia afeta a todos e, diante do espanto dessa nova situação, nós fizemos uma provocação aos artistas para que articulassem imagens que estivessem fora dos discursos já organizados como explicação para os problemas que estamos vivendo.
A primeira evidência é que a produção fotográfica foi bastante intensa neste primeiro ano de confinamento e teve uma característica de criação compartilhada. Na contingência do distanciamento, muitos autores e autoras se juntaram em trabalhos coletivos. Recebemos um conjunto de obras que mostram em primeira pessoa a vida nas trincheiras domésticas e coletivas em que fomos obrigados a nos meter. Imagens que marcam o tempo da monotonia, enxergam poeticamente os objetos abandonados pelo cotidiano e questionam o valor das coisas, o valor da vida. O que realmente vale a pena, com quem partilhamos essa première de catástrofe? Com quem partilhamos esse mundo de ponta cabeça que as imagens da câmera escura jogaram dentro da casa dos 84 autores do Obs.cu.ra? E o corpo, principalmente o corpo das mulheres fotógrafas, é lugar de inscrição deste drama. O trabalho das mulheres vem com grande força nesta edição.
Também vamos mostrar o trabalho imprescindível que o fotojornalismo fez mostrando o impacto da pandemia nas áreas invisibilizadas da América Latina com a participação do coletivo CovidLatam. É uma forma de homenagem nossa a todos que estiveram incansavelmente documentando esse momento. O sobrevoo neste ano pandêmico se completa com o engajamento da fotografia em ações beneficentes que colocaram no mercado obras de qualidade por valores acessíveis, criaram público e geraram renda em uma grande cadeia criativa de economia solidária.
Acreditamos que é uma abordagem bem ampla e rica do que aconteceu na fotografia neste primeiro ano de confinamento.
Poderia explicar um pouco como serão as videoexposições? Que particularidades esse formato oferece para o público em relação à maneira "tradicional" de fruir a fotografia, emoldurada em uma parede de museu?
A experiência é diferente da exposição em parede e depende um pouco do ambiente onde vai ser vista.
Em 2019, nós tivemos um excelente resultado do ponto de vista da interatividade do público com as obras com as impressões em grande dimensão que tivemos condições de fazer na (Fundação) Iberê Camargo. Mas as projeções também são muito particulares. No Centro Cultural CEEE Erico Verissimo, nós tivemos uma condição de exibição excelente. O auditório é maravilhoso e as imagens projetadas ali impressionaram o público e principalmente os autores.
A fotografia para ver em casa é um conceito próprio. Tem uma variação enorme nas possibilidades de telas e ambientes em que a pessoa vai estar. No ano passado, nós apresentamos as obras mescladas com uma ambientação tridimensional do projeto expositivo feito para as galerias da Iberê Camargo. Para 2021, nós vamos apresentar as obras dos 20 finalistas do Fotograma Livre, em uma edição feita pela Modus Produtora a partir do material produzido pelos autores inscritos no concurso. Vamos ter tanto os ensaios quanto os trabalhos autorais já finalizados como multimídia. Nós fazemos uma curadoria do material, e a Modus faz o tratamento do roteiro, respeitando a proposta original dos autores e criando uma nova apresentação.
Esse material é feito para ser exibido em ambiente digital e em projeções, presenciais ou não, em um circuito de festivais parceiros. Todo o material fica disponível no canal do FestFoto no YouTube e tem acesso gratuito. Já podemos nos considerar uma excelente opção para quem quer conhecer e curtir fotografia sem sair de casa.
O FestFoto vai destacar neste ano o trabalho de uma fotógrafa de poética bastante singular com atuação no Estado, a Tuane Eggers. O que mais chama sua atenção na obra dela?
A Tuane é sempre uma alegria. Faz parte de uma nova geração muito dedicada e criativa. Leva o processo criativo muito sintonizado com a vida acadêmica, isso significa que pensa teoricamente sua prática e pratica sua teoria. Um viva para a universidade, que está cada vez mais aberta a estas contaminações. Sobre o trabalho dela, além de ser uma excepcional fotógrafa, ela dá expressão poética a um modelo de comunicação baseado no contágio, no fluxo e na transformação. Isso não é pouco. Estamos acostumados à antiga ideia de formação de consensos pela racionalidade, e ela opta pela potência da contaminação.
Outro dado é o interesse dela pelos fungos, que era o tormento dos profissionais da imagem. O ataque de fungos em lentes e películas significava dano, prejuízo, perda de informação. Ela nos mostra que se trata de transformação, criação, abertura de novas possibilidades e resultados imprevistos. A recuperação de certa impertinência diante do suporte e dos processos é uma tendência que temos notado em artistas da geração dela, mas poucos conseguem imagens de uma delicadeza encantadora como a Tuane. Tive a sorte de receber como presente dela uma série de cartões postais que são parte deste trabalho. Um está emoldurado e serve de refúgio sempre que preciso olhar para alguma beleza. Os outros estão reservados...
Como vê as mutações da fotografia "de arte" em uma época em que a foto se tornou tão presente no dia a dia das pessoas (celular, redes sociais) ao ponto de virar banal?
Não considero que a abordagem mais produtiva da questão da proliferação de cliques seja pelo seu possível impacto no mercado da arte. Esse mercado tem seus próprios mecanismos de regulação e valoração das obras. Vale lembrar ainda que são muitos os casos em que o trabalho de "amadores" — a palavra é boa porque não significa apenas uma prática não profissional, mas também a ação de quem ama — ganhou status de arte. Bom exemplo é a exposição que o MoMA realiza com o pessoal do fotoclubismo paulista. No FestFoto, a questão é aproveitar a oportunidade. É um fato que a gigantesca produção de imagens digitais dá nova dimensão a questões como a ampliação da possibilidade de produzir memórias e de acessar um mundo onde a imagem é passaporte.
Na minha opinião, o aspecto mais interessante desta ampla disponibilidade de aparelhos capazes de gerar imagem é a possibilidade deles se transformarem em oportunidade para experiências de leituras sensíveis do cotidiano. Um dos nossos grandes objetivos no FestFoto é justamente despertar o interesse, mostrar fotografia e fazer com que as pessoas sintam vontade de fotografar. Claro que estamos aptos a ajudar a fotografia brasileira a chegar nos grandes circuitos internacionais da arte, mas também queremos servir como estímulo para quem pode se beneficiar da fotografia como uma via de expressão sensível de suas questões pessoais. Se as pessoas enxergarem algum recorte de beleza na sua vida, deixarem se afetar pela luz que banha o filho, o derrame de folhas no outono, nossa tarefa estará cumprida. É uma aposta. Uma possibilidade para brigar contra o embrutecimento.