
Junto à bandeirinha de escanteio, o lateral-esquerdo do Internacional escutou às suas costas a voz de timbre grave do homem negro, vestido todo de branco, que parecia estar prestes a tomar-lhe a bola.
– Vai saindo pelo lado, Sadi, vai saindo...
Soprava uma brisa primaveril naquela noite no estádio Olímpico – para quem não sabe, de 1967 a 1969, o Inter disputou as partidas do torneio Roberto Gomes Pedrosa (antecessor do atual Campeonato Brasileiro) no antigo campo do Grêmio. Era uma época de relações cordiais entre os rivais. A folhinha do calendário marcava o dia 23 de outubro de 1968, por coincidência, data de aniversário de Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, que completava 28 anos.
A noite não havia começado bem para Sadi Schwerdt, o lateral e capitão colorado. À porta do vestiário, ele tinha feito um grande esforço para insuflar o ânimo dos companheiros. Afinal, embora o Inter tivesse sido vice-campeão do torneio no ano anterior (façanha que repetiria em 1968), era preciso jogar com os brios à flor da pele para superar o Santos de Pelé, Carlos Alberto, Clodoaldo, Edu & cia. Para surpresa de Sadi, havia sido preparada uma festa em homenagem ao aniversariante. Da beira do campo, ele viu o caminhão com um gigantesco bolo no grande círculo do gramado. Desapontado, mal cumprimentou Carlos Alberto, quando o juiz chamou os capitães para o sorteio que iria definir quem daria a saída de bola. Nisso, observou Pelé acenando, a uma distância de 40 metros.
– Então, Sadi, não vem me dar um abraço?

Eram amigos, ainda que, nas nove oportunidades em que vestiu a camisa da Seleção Brasileira, ao lado de craques como Tostão, Rivelino, Jairzinho e Djalma Santos, Sadi não teve a sorte de jogar ao lado do maior deles. Por essas coincidências da vida, toda vez que Sadi era convocado, Pelé recebia dispensa para excursionar com o Santos. Mas haviam feito camaradagem durante uma sessão de fotografias da revista Fatos & Fotos, com os melhores jogadores do Brasil escolhidos por 53 jornalistas esportivos (Sadi fez parte da lista em 1967 e 1968).
Talvez a desconcentração da festa tenha influenciado ou, quem sabe, por causa dela, houvesse sobrado pouco tempo para o aquecimento muscular. Logo que o jogo teve início, ao lançar a bola em profundidade, com a parte externa do pé, em busca do impetuoso centroavante Claudiomiro, Sadi sentiu uma dor lancinante – o músculo adutor da coxa direita havia se rompido. Outra coincidência: era o mesmo músculo que, seis anos antes, Pelé tinha lesionado no jogo contra a Tchecoslováquia, em Viña del Mar, o que fez com que o Rei encerrasse, prematuramente, a sua participação na Copa do Mundo do Chile. Bem que o lateral tentou continuar em campo. Mas, após interceptar de cabeça uma bola que sobrevoava a área do Internacional, a dor ficou insuportável. Foi quando o balão escorregou em direção à linha de fundo – com Sadi atrás, arrastando a perna direita –, até parar na bandeirinha de escanteio.
– Vai passando, Sadi, vai passando... –dizia Pelé, com os braços abertos.
Para quem assistia da arquibancada, a coreografia de Pelé dava a impressão de que estava mesmo empenhado em ganhar o lance, mas era pura encenação. O maior jogador de futebol de todos os tempos se negava a disputar a bola com um adversário ferido. Sadi passou por entre Pelé e a lateral do campo e afastou qualquer perigo de gol.
Quase meio século depois, quando eu o ajudei a escrever a biografia Nosso Capitão (Libretos Editora, 2017), ele me contou essa história, em seu apartamento na Avenida Borges de Medeiros, com vista para o Guaíba:
– De certo modo, eu me senti humilhado com a generosidade do Pelé. Se estivesse no lugar dele, o espírito de competição falaria mais alto e, provavelmente, tentaria roubar-lhe a bola – disse-me Sadi, que faleceu em 2019.
Após o lance, ele saiu de maca para o vestiário, enquanto a festa do Rei continuava em campo. Na frente do goleiro Luis Carlos Schneider, Pelé avisou, antes de chutar:
– Olha o gol, Alemão!
Então, a bola desprendeu-se de seus pés e foi morrer mansamente no fundo das redes. Placar final: Santos 3 x 1 Internacional. Mas o resultado pouco importava. Naquela noite de temperatura amena no estádio Olímpico, o fair play de Pelé representou o verdadeiro gol de placa.