
Lançada neste mês pela Netflix, a série Adolescência vem levantando debates entre pais e educadores. O drama narra a história ficcional de Jamie, um menino de 13 anos que é acusado de assassinar sua colega de turma, Katie, em uma trama marcada por tópicos como a busca pela aceitação, o potencial nocivo das redes sociais e a ascensão da cultura incel.
Interpretado pelo estreante Owen Cooper, o protagonista é um jovem vulnerável e com pouca habilidade social, mas aparentemente incapaz de cometer o crime do qual está sendo acusado. Contudo, no decorrer dos quatro episódios da série, o público é apresentado a uma outra versão do personagem, violenta, punitivista e misógina, capaz, sim, de esfaquear brutalmente uma colega de classe.
Diferentemente de outras produções ancoradas sobre crimes, o enredo de Adolescência não se desenvolve em torno da descoberta da identidade do assassino. O que interessa não é revelar se Jamie matou ou não a colega, mas explorar a trama emocional complexa que motivou o crime.
É algo que tem início no ambiente online, em comunidades dedicadas à disseminação de discursos de ódio contra mulheres, a "manosfera". Nestes fóruns de caráter misógino, o personagem é apresentado a pontos de vista que parecem responder às angústias que o afligem, parte delas ligada a insucessos afetivos, e é incentivado a adotar comportamentos violentos contra as supostas causadoras dos seus problemas.
A história do personagem, apesar de fictícia, encontra validação em dezenas de casos semelhantes e reais. Por isso, Adolescência acendeu um alerta nos espectadores, chamando atenção para o crescimento da misoginia entre homens e, sobretudo, meninos.
Problema da vida real
Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) dedicado a pesquisar as intersecções entre educação, sexualidade e relações de gênero, Fernando Seffner afirma que o problema central retratado na série é um sintoma social emergente.
Segundo ele, a violência de gênero está cada vez mais inserida no universo juvenil e carece de respostas ágeis:
— Em pesquisas que já estão sendo realizadas em escolas a gente identifica a presença de discursos de característica incel, identifica comportamentos violentos e identifica disputas relacionadas ao gênero. Isso é algo que se vê, inclusive, em escolas de Porto Alegre. Então, não é algo que está distante de nós. Não se trata de um fenômeno inventado pela série.
Seffner observa que vivemos um momento marcado pela transformação do ódio em mecanismo definidor de identidades. Conforme o pesquisador, cada vez mais os indivíduos se aproximam a partir daquilo que desprezam, criando comunidades para validar os próprios preconceitos.
O fenômeno ajuda a explicar a ascensão de grupos xenofóbicos, racistas e misóginos, por exemplo. Tais comunidades crescem em adesão impulsionadas pelo desejo humano de achar culpados para os próprios infortúnios, a exemplo do que ocorre com o protagonista de Adolescência.
— Na internet, o Jamie encontra pessoas que dizem para ele que se ele não consegue conquistar a menina dos sonhos, a culpada é ela. E ele vai passar a acreditar nisso tão convictamente, que a ideia de punir a garota "responsável" pelo fracasso dele passa a ser encarada não só como uma possibilidade, mas como um dever. Esse é um discurso que conquista, porque a terceirização da culpa é algo tentador a todo ser humano. Ainda mais aos adolescentes, que não têm o discernimento e a autocrítica bem instituídos — reflete o professor.
Atenção à vida online dos adolescentes
Tanto na série quanto na vida real, a internet é um elemento chave, pois são nas comunidades virtuais que tais ideologias encontram solo fértil para florescer. Porém, no entendimento da psicóloga Ilana Luiz Fermann, autora do livro Uso Nocivo de Internet e Mídias Sociais – Adoecimento Mental e Protocolo de Intervenção Cognitivo-Comportamental (Juruá Editora), o tema não deve ser tratado somente pelo viés da vilanização das redes.
Ilana defende que as ferramentas digitais têm pontos positivos e negativos. O que está em jogo é o uso que cada um faz delas:
— A internet e as mídias sociais facilitam muito a nossa vida e, se bem utilizadas, proporcionam formas de entretenimento, estudo, trabalho e lazer. Porém, se mal utilizada, a internet também pode ocasionar sintomas cognitivos, emocionais, fisiológicos e comportamentais graves.
A psicóloga chama atenção para a importância do desenvolvimento de uma educação para o uso das redes sociais e das ferramentas digitais. Segundo ela, pais e responsáveis pela criação de criança e adolescentes precisam estar preparados para lidar com a presença online dos jovens e orientá-los quanto a postura que adotam no ambiente virtual.
Isso inclui supervisionar os conteúdos aos quais os filhos são expostos e a forma como se comunicam online. A psicóloga reconhece que a prática é considerada sensível, mas defende que tal supervisão é necessária e pode ser feita de maneira amigável.
— Estou falando de monitorar para orientar e estabelecer um espaço de comunicação, de troca, de acolhimento e, claro, de limites. Supervisionar não é invadir a privacidade. Para manter essa diferença, é importante buscar formas adequadas de agir — diz.
Presença e diálogo
Outro aspecto abordado pela série diz respeito ao distanciamento entre o protagonista e os adultos que estão ao redor dele. O tópico é evidenciado pela surpresa que os pais e professores de Jamie demonstram ao serem confrontados pelos dramas que vêm sendo vivenciados pelo personagem central de Adolescência — a exemplo da baixa autoestima, o sentimento de inadequação e a insegurança.
Para Seffner, a série acerta ao retratar, através de Jamie, a pouca conexão que grande parte dos jovens mantém com seus pais e educadores.
— O Jamie não é um adolescente abandonado. Ele tem uma família estruturada, estuda em uma boa escola, ou seja, está cercado por uma rede de atenção. Porém, nenhuma parte dessa rede de atenção está verdadeiramente atenta a ele. Há muitos adultos em torno do personagem, mas todos se mostraram incapazes de olhá-lo de forma individualizada — observa.
Psicanalista especializada no atendimento a adolescentes, Bianca Piazza destaca que a presença dos adultos é imprescindível para que os jovens passem pelas mudanças típicas da adolescência de maneira saudável. Em meio ao turbilhão de sentimentos e descobertas que marcam o período, é preciso ter "pontos de bússola que ajudam a encontrar o caminho".
Conforme Bianca, a relação intergeracional pode ser complexa, mas não deve ser negligenciada.
— A gente sabe que a vida anda muito corrida, que as demandas são muitas para os adultos, mas ainda é importante que os pais priorizem ter tempo de qualidade com os filhos. Nem sempre vai ser fácil, mas precisa haver um trabalho de insistência. Insistência no diálogo, insistência na presença, insistência em fazer parte da vida do adolescente, mesmo que haja resistência — diz a psicóloga.
O ponto de vista é compartilhado pelo procurador Fábio Costa Pereira, do Ministério Público do RS, que destaca a importância de se estar atento a mudanças de comportamento dos adolescentes. Para Pereira, a soma de esforços das diferentes instâncias da sociedade pode ajudar a evitar episódios como o retratado pela série.
— Os jovens, nesse tortuoso caminho da adolescência, vão deixando pegadas, vão deixando os rastros, aquilo que o Ministério Público vai chamar de sinais. Nós, enquanto sociedade, precisamos estar atentos a eles — observa o procurador, que cita o isolamento, a rigidez de opiniões e a curiosidade por atos de violência como sinais de alerta a serem observados.