Em vídeo, uma criança chora ao ter que tomar vacina, gerando milhares de comentários, reações e debates. Passando o feed, outra gravação mostra uma criança mergulhada em lama. Plataformas como Instagram, Youtube e TikTok mobilizam milhares de pessoas a cada instante exibindo vídeos em que crianças passam por testes, perguntas, experimentos sociais e até brincadeiras aparentemente inofensivas. Por trás da pretensa diversão, no entanto, pais acabam expondo menores, que, por vezes, podem sofrer os impactos dessa hipervisibilidade.
Em março deste ano, por exemplo, a tiktoker americana Savannah Glembin chegou a perder temporariamente a guarda do filho após enrolar a criança em saco plástico filme e publicar o vídeo na internet. À época, ela justificou que o marido estava apenas brincando com o menino.
— Pais que ridicularizam as crianças acabam quebrando com essa necessidade vital de vínculo seguro. Não se dão conta o quão mal estão fazendo por essas crianças. Quando deveriam ser a âncora de cuidado, são justamente aqueles que estão ridicularizando e praticando abuso emocional com a exposição pública. É uma situação abusiva — avalia Valéria Thiers, professora do Curso de Psicologia da Escola de Ciências da Saúde e da Vida da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Professora do Departamento de Psicologia do Desenvolvimento e Personalidade e do Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Giana Bitencourt Frizzo acrescenta que a proteção e socialização da criança são funções da família. Por isso, quando alguém próximo posta um vídeo dos filhos os colocando em situação constrangedora, está desprotegendo os menores. Há, inclusive, o termo conhecido como sharenting, que é a prática de publicar muitas fotos e vídeos de crianças nas redes sociais.
— É uma exposição dos pais pela criança, que pode ser de coisas mais fofinhas, bonitinhas, mas que às vezes entram por essas questões que têm aparecido bastante nos últimos dias, como postar situações em que a criança aparece chorando ou levando sustos. Se os pais se dessem conta do mal que podem gerar na criança com isso, não sei se eles fariam — observa Giana, que também é coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Intervenção em Famílias com Bebês e Crianças (NUFABE) do Instituto de Psicologia da UFRGS.
Valéria, da PUCRS, lembra que essa exposição pode mobilizar uma série de questões, já que os pais são responsáveis pelas necessidades emocionais básicas, e que estão ligadas a vínculos seguros.
— A criança morrendo de medo da vacina é uma resposta adaptativa. Um pai ou a mãe ridicularizar essa situação, pedir para “engolir” o choro, dizer que é fiasco, acaba invalidando um sentimento que é esperado. A gente vive numa sociedade que "espetaculariza" a dor e o sofrimento, além de banalizar a violência que cometemos — destaca Valéria, citando o filósofo Guy Debord, autor da obra Sociedade do Espetáculo, lançada em 1967, em que afirma que a mercadoria e a aparência se tornaram mais valorizadas no contexto das relações sociais.
O espaço para discutir segurança digital
Giana explica que as discussões sobre segurança digital vem ganhando espaço a partir dessas práticas.
Não se dão conta o quão mal estão fazendo por essas crianças. Quando deveriam ser a âncora de cuidado, são justamente aqueles que estão ridicularizando e praticando abuso emocional com a exposição pública. É uma situação abusiva.
VALÉRIA THIERS
Professora do Curso de Psicologia da Escola de Ciências da Saúde e da Vida da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)
— É um fenômeno muito recente, mas já tem algumas coisa sobre ciberbullying, por exemplo, que entra nessa questão de violência e mostra impactos importantes na autoestima e na saúde mental das crianças — observa.
Quem publica vídeos e fotos em redes sociais também assume outros riscos. Por isso, Giana recomenda que crianças menores de 12 anos devem evitar contato precoce com a internet. Ela destaca que alguns pais e mães mantêm perfis de crianças de bebês desde o primeiro dia de nascimento com o objetivo de mostrar fotos ou monetizar o perfil das crianças
— Muitos pais fazem isso sem crítica de como expor essa criança. Às vezes, por uma questão financeira, desejam que essa criança seja um youtuber, que seja uma forma de renda para a família, como os atores mirins de antigamente — compara.
Estatuto da Criança e do Adolescente
A Divisão Especial da Criança e do Adolescente (Deca) da Polícia Civil, de Porto Alegre, destaca que os pais que praticam esse tipo de conduta podem ser enquadrados no artigo 232 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que prevê condenação a quem "submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento". A pena pode ser de seis meses a dois anos de detenção.
— Os pais têm que compreender que, dependendo da idade, a criança ainda não possui o senso de humor desenvolvido nem capacidade para compreender o sentido dessa conduta que está sendo praticada pelas pessoas que elas mais confiam. Há uma quebra de confiança, além de uma violência contra a criança e uma exposição que nunca mais será apagada da internet — explica a diretora substituta da 3ª Delegacia de Polícia de Proteção à Criança e ao Adolescente, delegada Elisa Ferreira de Souza.
Ela critica vídeos publicados em redes sociais em que pais aparecem ridicularizando os filhos no momento de tomar uma vacina, por exemplo.
— Esse tipo de conduta não deixa de ser uma forma de bullying praticado pelos próprios pais e tão combatida hoje em dia. É sempre bom lembrar que os comportamentos e atitudes que a pessoa em formação presencia em casa inevitavelmente serão reproduzidos na rua, na escola, no seu convívio social. Sem falar na autoestima dessa criança, que poderá ser atingida com esse tipo de “pegadinha”. É um total absurdo expor uma criança a tal situação humilhante e vexatória — ressalta.
As plataformas Youtube e TikTok não responderam aos questionamentos da reportagem de GZH sobre quais medidas adotam para evitar este tipo de conteúdo nas suas redes.