Desde que movimentos LGBT+ começaram a usar a linguagem neutra, a reação da sociedade foi de estranhamento. Em alguns casos, de recusa total. Leis foram criadas no Brasil proibindo escolas e universidades de usarem esse tipo de comunicação, que dá a opção para que a fala e a escrita tenham um gênero indefinido - que não seja nem masculino, nem feminino.
Mas o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou uma lei de Rondônia vetando a linguagem neutra, por entender que é competência da União legislar sobre bases e diretrizes da educação. Diante disso, a Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre (Smed) aguarda um parecer da Procuradoria-Geral do município analisando como ficará a lei proibitiva de Porto Alegre, sancionada em 2022 por Sebastião Melo e que impede as escolas da rede municipal de aderirem a essa comunicação.
GZH convidou estudantes para explicar quando, como e por que usam a linguagem neutra. Segundo eles, é uma forma de falar que contempla as pessoas não binárias, ou seja, que não se reconhecem nem como homem, nem como mulher. Começou nas redes sociais, quando ainda se usava "x" no lugar de "o" e "@" em vez de "a". Como é impossível usar esses símbolos para formar frases no discurso falado, acabaram caindo em desuso, e estabeleceu-se o uso do "e" e mesmo do "u", como em "elu" em vez de "ele" ou "ela" e "bonite" no lugar de "bonito" ou "bonita".
Foi por intermédio de um amigo identificado como não binário que Dani Bestetti conheceu a linguagem neutra. Conversavam pela internet flexionando substantivos e adjetivos tanto nas mensagens quanto em videochamadas. Hoje, o estudante de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) usa esse tipo de comunicação na sala de aula e principalmente no Centro de Estudantes de História (Chist), onde atua como secretário de ensino, extensão e pesquisa, e sente-se confortável para falar desse jeito com colegas da sua faixa etária.
— Quando ume amigue minhe se identificou como não binárie, elu falou que usava a linguagem neutra. Depois, ganhei uma bolsa de iniciação científica e comecei a estudar sobre a história dos gêneros e a história da população LGBT+. Entrevistei várias pessoas que usavam a linguagem neutra e comecei a me identificar mais, a perceber que existe uma possibilidade fora do padrão — diz.
Dani foi associado ao sexo feminino ao nascer, mas hoje, aos 22 anos, não quer se limitar a ser homem ou mulher. Mantém um visual tido como feminino, mas não quer ser chamado de "ela". Pede para ser tratado como "elu", mas também pode ser "ele". Afirma, no entanto, que não é a aparência que define o que uma pessoa é.
— Por que a gente tem que ser ou homem ou mulher, se a gente pode fluir entre os dois, ou nenhum dos dois? Ser apenas um ser que existe, sem gênero. Quero simplesmente existir.
Considera inválido o argumento dos que dizem que a palavra "todos", por exemplo, é suficiente para abranger as diferentes expressões de gênero. Prefere "todes".
— "Todos" não é neutro, pois está flexionado no masculino. É baseado numa ideia patriarcal que usa a expressão "homem" como sinônimo de "ser humano" — diz.
Por que a gente tem que ser ou homem ou mulher, se a gente pode fluir entre os dois, ou nenhum dos dois? Ser apenas um ser que existe, sem gênero. Quero simplesmente existir.
DANI BESTETTI
Estudante
Jovem estudante da UFRGS foi definido como mulher ao nascer, e, assim como Dani, hoje se reconhece como não binário. Pede para ser tratado como "ele" ou "elu" e transita entre jovens que usam a linguagem neutra, mas tem dificuldade em aderir completamente a esse vocabulário. Acha que "linde", "queride" e "amigue" ainda podem soar de um jeito estranho aos ouvidos.
— A minha fala, na verdade, é bem binária ainda. Na internet é mais comum eu usar a linguagem neutra, porque não causa estranheza. Se fosse mais comum no ao vivo, eu acho que usaria mais. Mas é uma coisa que está acontecendo aos pouquinhos, que está saindo aos pouquinhos da internet. Só uma questão de pegar costume — diz o estudante, que prefere não ser identificado nesta reportagem porque a família ainda não sabe que ele é não binário.
Contudo, toma o cuidado para chamar a pessoa no pronome que for solicitado, e irrita-se toda vez que alguém erra o seu, cometendo o deslize de o tratar como "ela".
— Reconheço que tenho uma aparência mais feminina, mas sou não binário, então fico ofendido quando a pessoa erra. É um saco.
Estudante de Biblioteconomia da UFRGS, Isadora Gurski, 20 anos, define-se como mulher cisgênero, ou seja, sente-se confortável com o gênero que lhe foi atribuído no nascimento. Pede para ser tratada como "ela" e gosta de usar a linguagem neutra para falar com os amigos, muitos não binários. No Centro Acadêmico de Biblioteconomia, Arquivologia e Museologia (Cabam) da universidade, onde atua como tesoureira, lida com diferentes estudantes todos os dias. Criou o hábito de perguntar como querem ser chamados, um questionamento cada vez mais comum entre os jovens e que, dependendo da resposta, é uma sinalização para usarem a linguagem neutra.
— Sempre perguntamos: "Qual é o teu pronome"? Assim já sabemos e conseguimos ser respeitosos. Virou algo espontâneo entre nós — diz.
Os três não costumam fazer essas perguntas para pessoas que não aparentam estar por dentro das discussões sobre gênero. Também não têm o hábito de usar a linguagem neutra fora da universidade e da comunidade LGBT+, pois existe o medo da discriminação.
— Uso com quem está acostumado a usar linguagem neutra, até porque é muito violento usar em outros lugares. Tem quem possa te atacar por causa disso — diz Dani.
Ao conversar com a repórter, nenhum dos estudantes flexionou toda as suas falas para o gênero neutro. Isadora até conhece pessoas que conseguem fazer isso, mas, para ela, o emprego da linguagem neutra ainda é parcial.
— Só falo quando é para me dirigir a um grande público ou com quem me diz que é "elu/delu". Mas internalizar em toda as falas, ainda não consigo.
Ao contrário do que muitos podem imaginar, a linguagem neutra não quer mudar toda a língua portuguesa, abolindo para sempre as palavras masculinas e femininas, observa Fábio Ramos Barbosa Filho, professor adjunto do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coautor do livro Linguagem Neutra: língua e gênero em debate (2022). É apenas uma forma de se dirigir a pessoas não binárias que pedem por esse tipo de tratamento.
— O argumento de quem é contra é que a linguagem neutra quer subverter a língua de tal forma que ninguém mais vai se entender. Não se trata de mudar a língua, mas que, em determinadas condições, se possa empregar palavras sem marcação de gênero. Se estou conversando com um amigo cisgênero que se identifica como "ele", não faz sentido eu usar o "elu". Eu só vou usar o "elu" quando me referir a alguém não binário, a alguém que peça para ser tratado como elu. É só isso, e isso já é muito — diz Filho.
A respeito das leis que proíbem a linguagem neutra, como a de Porto Alegre, os jovens encaram como uma reação natural a tudo o que é muito diferente e transgressor — ainda que um pouco desmedida.
— Sempre vai ter pessoas querendo proibir qualquer coisa que for de vanguarda. Mas a linguagem neutra está entrando naturalmente. Nunca iria imaginar ver o pessoal usando na faculdade — reconhece o estudante da UFRGS que pediu para não ser identificado.
Ainda que só use a linguagem neutra para chamar um "amigue" ou fazer um cumprimento geral a "todes", Isadora acredita que, no futuro, esse tipo de comunicação terá maior adesão.
— A gente está na faculdade. Todo mundo aqui que faz parte da comunidade LGBT+ usa a linguagem neutra. Se nós seremos o futuro, então as pessoas vão se acostumar.
Dani acha que o receio de que a língua se transforme precisa acabar, afinal, é um processo que sempre aconteceu.
— Antigamente, usávamos o "vosmecê", e o "vosmecê" virou "você". A língua é viva, está sempre mudando. E mudar para abarcar identidades que sempre existiram é um grande motivo para mudar.
Dicas para acertar no uso da linguagem neutra
- Quando se dirigir a várias pessoas, usar "todos, todas e todes".
- Em uma abordagem individual, perguntar como a pessoa se identifica e com quais pronomes ela deseja ser tratada.
- Linde, queride, bonite são exemplos de adjetivos flexionados para o gênero neutro.