
— O que vai ser pro amigo hoje? — pergunta Márcio Dexheimer, do Armazém Bom Fim, sempre que um cliente surge à porta. Há cinco anos, Márcio é dono do mercadinho de 65 metros quadrados situado na Rua João Telles, em Porto Alegre. Trabalha no caixa, enquanto a esposa, Renata, o enteado, Matheus, e quatro funcionários intercalam-se no abastecimento das prateleiras e no atendimento aos fregueses.
À medida que os embargos às atividades econômicas, decretados devido à pandemia, disseminaram uma crise sem precedentes pelo comércio do país, Márcio vivenciou movimento contrário. Nos últimos meses, as vendas de seu armazém ampliaram-se em 30%. Mesmo após as mudanças na flexibilização do comércio na Capital, ampliando a concorrência, o proprietário avalia que as vendas ficaram estáveis.
— A principal causa desse aumento foi o fato de o pessoal passar mais tempo em casa. Estão consumindo mais itens de mercadinho — diz o proprietário.
Márcio integra um grupo de pequenos comerciantes que, refratários à crise, assistem ao crescimento de seus negócios em meio à síncope financeira. Em área residencial, o armazém acompanha uma dinâmica ainda incipiente inaugurada pela pandemia, de redescoberta do comércio de bairro.
Pela necessidade de distanciamento social, moradores mais cuidadosos passaram a escapar das compras assíduas nas grandes redes, preferindo um rancho mensal a ser complementado semanalmente por itens do comércio mais próximo.
Há, ainda, causas abstratas, identificadas em pesquisas de comportamento. Mais suscetíveis à crise, pela tímida capacidade financeira, pequenos negócios despertaram um senso de responsabilidade em clientes conscientes – afinal, a continuidade do funcionamento e a manutenção dos empregos destes estabelecimentos dependem, sobretudo, de hábitos de consumo.
— O estabelecimento de bairro emprega familiares, amigos, conhecidos e vizinhos, sendo valorizado neste momento de dificuldade. Espero que essa tendência permaneça mais adiante, porque quem está próximo precisa ainda mais do nosso apoio – analisa Márcio Port, vice-presidente da central Sicredi regiões Sul e Sudeste.
Modernização
Recém o coronavírus desembarcara no país quando a consultoria Kantar, de dados de mercado, detectou a migração para os mercadinhos. No primeiro trimestre deste ano, segundo a empresa, mais de 2 milhões de lares brasileiros passaram a comprar no pequeno varejo – 60% dos entrevistados atribuíram o comportamento à necessidade de evitar aglomerações.
Proprietários também atribuem a maior demanda à comodidade de seus descomplicados sistemas de telentrega, que não costumam ser oferecidos por grandes redes. Por causa da alta procura, o dono do Armazém Bom Fim rendeu-se ao WhatsApp comercial. Márcio disponibiliza, desde antes da pandemia, delivery gratuito na região para compras acima de R$ 20.
— Pelo WhatsApp é possível atender, ao mesmo tempo, meia dúzia de clientes, em vez de estar ali, no telefone, atendendo um por vez — ensina o comerciante.

A quatro quilômetros dali, Rudinei Vettorazzi seguiu estratégia semelhante. À frente do Mercado Bela Vista, na Rua Pedro Ivo, o comerciante teve de chamar dois funcionários extras para dar conta das encomendas nas primeiras semanas de confinamento. Suas vendas aumentaram 30% em relação a antes da pandemia – apenas na telentrega, mais de 40%.
Atento à preferência da vizinhança, onde está inserido desde 1995, Rudinei tem dois motoboys à disposição e, nos dias mais corridos, ainda aciona sua carreta para a distribuição de sacolas pelos arredores. As regras são similares às do colega do Bom Fim – basta um pedido de R$ 30 para que nada se pague pelo deslocamento.
— Tem o lado ruim do que estamos passando, da pandemia, mas, quanto ao lado financeiro, para a gente melhorou bastante — contemporiza Rudinei.
O recente robustecimento de mercadinhos passa, ainda, pela modernização desses estabelecimentos. Antes conhecidos como quitandas – o do Bom Fim era chamado de Fruteira do Lelo, e o da Bela Vista, Fruteira do Celso –, os armazéns de bairro reciclaram-se nos últimos anos.
Fachadas ultrapassadas deram lugar a letreiros atraentes e produtos selecionados foram incluídos no estoque, atendendo ao paladar da clientela de bairros de classe média-alta. Limpeza e organização transformaram-se em requisitos de primeira ordem, afastando a obsoleta imagem de mercadinhos como ambientes surrados.
— O pequeno negócio é sobre gente fazendo negócio com gente. Há uma função social no comércio de bairro, porque são lugares que estabelecem relação de confiança com a comunidade. É muito mais do que uma compra – observa Fabiano Zórtea, especialista de competitividade setorial do Sebrae-RS.
A salvação que vem pela telentrega

Nascido em 2012 com o propósito de resgate do espírito interiorano de vizinhança, o Mercado Brasco, no Moinhos de Vento, dependia do vaivém de sua rua, a Florêncio Ygartua, ocupada por escritórios e consultórios. De início, o faturamento caiu quase pela metade, sendo recuperado aos poucos pela aposta nas entregas a domicílio. Além da inserção em aplicativos de delivery, o mercado lançou uma iniciativa simpática aos clientes idosos – o tele-Brasco, de entrega gratuita para integrantes dos grupos de risco da covid-19.
— Pela segurança, as pessoas se forçaram a comprar perto de suas casas, principalmente nos momentos agudos da pandemia. Tínhamos de fazer ações para chamar quem não estava por perto, mas também não queríamos que se deslocassem de longe. Aí, criamos uma resposta para levar a loja até a casa dos clientes — conta o sócio Gabriel Drumond.
Para o Brasco, a crise sanitária foi, ainda, o momento de materializar um antigo plano. Os sócios investiram no desenvolvimento de uma plataforma própria para encomendas, rompendo a dependência de aplicativos terceirizados.
Concorrência
Embora constatado por alguns comerciantes, o deslocamento das compras para os mercadinhos não é unanimidade. Proprietários afirmam que estabelecimentos instalados em bairros residenciais mais ricos foram os principais beneficiados pela pandemia.
Já os armazéns de áreas comerciais e escolares padecem da crise. No Mercado Dulukas, no Alto Petrópolis, a queda de receita também tem sido revertida, aos poucos, pela telentrega. O proprietário, Leandro Dall’Agnese, que é gestor da Associação dos Minimercados de Porto Alegre (AMMPA), ressente-se que pequenos negócios só não têm desempenho melhor pela dificuldade em concorrer, nas ofertas, com as grandes redes:
— Nós, que cuidamos dos próprios mercados, percebemos rostos diferentes entrando. Mas, em geral, o tíquete médio é baixo. Para compras grandes, as pessoas ainda vão ao supermercado, porque pensam que irão conseguir um preço melhor. Às vezes, isso é ilusório.
Com uma grande ajuda da internet
Desde que o coronavírus debutou pelo país, o comércio de itens não essenciais, em regime adverso dos mercadinhos, acumulou meses de fechamento compulsório. Muitos empresários, contudo, surpreenderam-se ao perceber que contariam, de maneira natural, com o vínculo afetivo estabelecido com seus clientes. Para esses, a relação de proximidade dos negócios de bairro resultou em vendas.
Clientes, que se transformaram em amigos, apareceram para ajudar. Tive a sensação de que as pessoas não queriam que fechássemos
CLÁUDIO MATTOS
Dono da Regentag
— Clientes, que se transformaram em amigos, apareceram para ajudar. Tive a sensação de que as pessoas não queriam que fechássemos – diz Cláudio Mattos, da loja de roupas Regentag, no Bom Fim.
À força, o mercado local também descobriu a utilidade das redes sociais. Cláudio anunciou, pelo Instagram, que faria telentrega sem custos para toda a cidade, colhendo pencas de pedidos online. Apesar da flexibilização das atividades na Capital, o isolamento serviu para colocar em prática algo que já deveria ter saído do papel, avalia o proprietário:
— A gente está aberto, na batalha, respeitando os horários. Dá um pequeno alívio (a flexibilização). A pandemia acabou sendo sendo uma gasolina para adiantar o online. A gente está lutando para chegar lá na frente, para se manter aberto.
Alerta
Dona da loja de roupas De Todos os Santos, na Cidade Baixa, Carla Rosário seguiu o mesmo plano. Além disso, dedicou-se pessoalmente às postagens, após cursos gratuitos de redes sociais, e aderiu à ressuscitada moda das sacoleiras, deixando malas na casa de suas clientes.
— Só não fechei porque canalizei todas as minhas energias para a loja e as redes sociais. Foi fundamental para, ao menos, colocar a cabeça para fora d’água e respirar um pouco aliviada — conta Carla.
Em meio à pandemia, reinventar-se tornou-se mantra repetido à exaustão por pequenos empreendedores. Marina Carvalho, da Alma Objetos Cerâmicos, ilustra esse movimento de redenção. Diante dos negócios abalados pelo cancelamento de suas oficinas presenciais, a artesã da Capital decidiu colocar no ar seu antigo sonho de um e-commerce próprio.
— Está sendo um momento de me experimentar, e a comunidade respondeu em peso. Foi um boom de vendas — afirma a ceramista.
Preocupado com a crise, o presidente da Associação Gaúcha para Desenvolvimento do Varejo (AGV), Sérgio Galbinski, alerta que, se os consumidores deixarem de comprar em seus estabelecimentos preferidos, poderão não estar mais abertos quando a pandemia passar.
Parceria entre gigantes e pequenos
Há receio entre pequenos empreendedores de que, superado o coronavírus, clientes retornem, assíduos, aos grandes empreendimentos. No intuito de criar consciência coletiva, líderes empresariais impulsionam campanhas em apoio ao comércio local.
No país, a mais abrangente chama-se Compre do Bairro, concebida pelo CEO do Grupo Malwee, Guilherme Weege. Por trás do movimento também estão CEOs da Magazine Luiza e da Ambev, além do suporte do Sebrae nacional.
— Cabe aos empresários brasileiros, e a todo mundo, envolver-se nesse propósito, porque, quando um comércio local vai mal, um bairro inteiro também sofre. É uma questão de responsabilidade social — ilustra a gerente de marketplace da Magalu, Mariana Castriota.
Antecipação
Para fortalecer os menores, a Magazine Luiza antecipou o lançamento de um programa, o Parceiro Magalu, programado apenas para o final do ano. Trata-se de um sistema de gestão simplificada que disponibiliza uma plataforma de vendas em seu próprio e-commerce, a uma taxa de 3,99%, considerada mínima no mercado.
A iniciativa, de acordo com Mariana, incorpora a credibilidade da marca e a possibilidade de ser notado no universo colossal da internet – dados da Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (Abcomm) apontam que, entre março e maio, 107 mil novas lojas online surgiram no país – um novo e-commerce por minuto.

Proprietário da Ferragem Silveira, no Parque dos Maias, João Carlos da Silveira aderiu à parceria. Sem prática no mundo online, viu as vendas pelo site representarem metade do faturamento mensal.
— Me ajudou bastante, em um momento em que tudo estava meio parado, para colocar os pagamentos de funcionários e impostos em dia — assegura João.