Por Robson Freitas Pereira
Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa)
“I don’t know who l am
But you know life is for learning”
Woodstock, Joni Mitchel
“Meu super-herói foi a música
Me deu asas, asas
Poesia, avuá”
Avuá, Emicida
Qual a importância de comemorarmos um cinquentenário? Se fosse aniversário de alguém poderíamos achar óbvio fazer uma celebração de 50 anos. Mas um acontecimento que teve lugar e data? A pergunta abre espaço para uma discussão interessante; a começar pela importância de transmitir um legado, uma memória cultural. O evento passou, por isso é datado. Programado para durar três dias, terminou depois de quatro (na manhã de segunda-feira, 18 de agosto de 1969, após antológica apresentação de Jimi Hendrix). E teve gente que levou muito tempo para chegar em casa, ou mesmo nem voltou; continuou on the road.
As mídias da época – rádio, jornais e televisão – repercutiram o inusitado: o público previsto triplicou, fazendo com que a entrada ficasse gratuita e o investimento dos quatro rapazes ficasse a perigo, houve caos no trânsito, condições precárias de hospedagem, alimentação, higiene e médicas. Sem falar na reunião de todas as “tribos” daquele momento – das comunidades hippies aos black panthers, passando por voluntários, dispostos a dar uma ajuda amigável. Choveu torrencialmente num dos dias. Tinha todos os ingredientes para ir “da lama ao caos”, lembrando o título do álbum de Chico Science e Nação Zumbi. Não aconteceu.
A partir do acontecimento, temos os efeitos que duram além do tempo cronológico. Estamos naquela dimensão anacrônica do evento, transcendendo a cronologia dos fatos, instaurando permanência. Isso nos interessa; porque introduz na cultura essa relação singular com o tempo e o espaço, permitindo atualizar, fazer este jogo de análise simultâneo onde o passado analisa o futuro e o presente analisa o passado, reconhecendo a impossibilidade de um juízo definitivo. Só os fundamentalistas têm certezas inabaláveis. Um evento como esse apresenta toda a riqueza das articulações da cultura com a política.
O festival começou sua trajetória histórica por meio dos discos (um álbum triplo! depois mais um duplo) e filme (dirigido por Michael Wadleigh, com os jovens Martin Scorcese e Thelma Schoonmaker como assistentes de direção e montadores). Esses veicularam as canções, vozes e imagens dos artistas e pessoas atraídas pela música e um discurso que reafirmava a “era de aquarius” como possibilidade de que o amor, a flor, as cores e um desejo de transformação poderiam fazer frente à guerra (Vietnã, para os EUA), ou outras formas de violência espalhadas pelo mundo (AI-5 no Brasil e diversos regimes truculentos na América Latina).
Dois exemplos: na Grécia dos coronéis, o filme só foi liberado depois de muita manifestação nas ruas; na África do Sul do Apartheid, foram cortados todos os artistas negros ou bandas que tivessem integrantes afro (Richie Havens e Santana, por exemplo). Adversidades que só ampliaram os efeitos do evento.
Em Acordei em Woodstock – Viagem, Memórias, Perplexidades, Ignácio de Loyola Brandão lembra que no Brasil de 1969/70, onde qualquer grupo com mais de três pessoas podia ser reprimido, reunir-se para ver um filme no qual as pessoas cantavam, dançavam juntas, consumiam drogas e tomavam banho despidas era um ato de resistência contra a ditadura. Sem falar no efeito da transformação de símbolos: o V da vitória na Segunda Guerra Mundial transmutou-se em paz e amor.
Controvérsias existem porque a história é campo de lutas, como a política. Não necessariamente de morte, no melhor dos casos, mas conflito. Woodstock foi o auge e, simultaneamente, o começo do fim de uma era. O contexto mostrou sua face destrutiva no festival de Altamont, que teve episódios de violência que culminaram com quatro mortes, poucos meses depois.
A proposta original, a surpresa que marcou Woodstock, não se repetiu. “O sonho acabou/ quem não dormiu de sleeping bag/ nem sequer sonhou”, dizia a canção de Gilberto Gil (parafraseando John Lennon), mas acrescentava “foi pesado o sono/ pra quem não sonhou”. Os festivais, hoje, têm público controlado, regras sanitárias e de comportamento. As drogas não servem mais para expandir as mentes, muitas delas só encurtam os horizontes. Lugares bucólicos podem estar dominados pelo narcotráfico ou milícias. Um nacionalismo estranho e o ódio ao diferente cresceram nos últimos tempos, como se recrudescer a violência e incentivar imperativamente o individualismo fosse resposta para o mal-estar contemporâneo e à dificuldade de conviver nas grandes comunidades.
Entretanto, as manifestações musicais insistem em denunciar a barbárie e anunciar novos tempos. Tecnologia mediante, com streaming forte e smartphones, a música ainda fala aos corações e mentes. Milhares de grupos, compositores/diretores jovens, nos bairros diversos, sustentam uma narrativa que não se deixa abater, dizendo ainda estamos aqui – o pulso ainda pulsa, apesar de tudo.
As imagens inovadoras do documentário Woodstock, hoje, são lugar-comum. Nosso olhar está acostumado àqueles cortes, sons e conversas que a tecnologia digital potencializou. Mas a profusão de imagens pode ser bem mais do que mero “colírio” repetitivo. Retomar um significante que se denominou Woodstock ajuda a reinventar as iniciativas de viver em comunidade, exercitar a tolerância, respeitar as diferenças civilizadamente, cultivar a alegria e desejar um mundo melhor. Pois viver não é preciso, e o futuro não está decidido.