Por Rodrigo de Lemos
Doutor em Literatura, professor do Departamento de Educação e Humanidades da UFCSPA
Balzac, o grande romancista do século 19, fez da corrupção um dos temas fortes de uma das suas obras-primas, A Prima Bette (1846). Em um dos desenlaces trágicos do livro, o militar Johann Fischer suicida-se na prisão, desonrado por haver desviado recursos de um entreposto do Exército francês na Argélia.
Esse duro episódio de punição é significativo de mudanças na sociedade francesa da era burguesa. A Revolução de 1789, com suas doutrinas sobre os direitos do cidadão e sobre o interesse geral, assumira a bandeira do combate à corrupção do Antigo Regime decadente, e os séculos 19 e 20 souberam consolidar no país burocracias de elevado padrão técnico, orientadas no geral por um espírito de serviço público.
Uma evolução semelhante ocorreu nos Estados Unidos, outro país central no Ocidente que poucos brasileiros associariam hoje à má governança e à corrupção galopante. Foi, no entanto, contra tais males do século 19 americano que se ergueram os reformadores da Era Progressista (circa 1900-1920), os quais conduziram veementes campanhas pela moralização do Estado.
A História existe, e as sociedades nem sempre foram o que são. O Brasil estaria nesse caminho? Segundo a ONG Transparência Internacional, 11% dos brasileiros admitiram em enquete já terem pago propina por serviços públicos (como saúde e educação). O percentual pode parecer elevado se o confrontarmos aos números que supomos serem os da Suíça ou do Japão. Ainda assim, na comparação com países de desenvolvimento semelhante, a taxa não é a mais escandalosa. No Uruguai, ela dobra. No México, atinge 51%.
É natural que os brasileiros recebam com algum ceticismo esses números menos ruins do que o esperado. Ainda assim, podemos nos perguntar se a grande corrupção dos altos círculos (exposta, por exemplo, nos escândalos do Mensalão e da Lava-Jato) reflete-se, em proporção tão avassaladora, na vida cotidiana. É fácil exagerar os bens e os males do Brasil sem compreendê-lo em sua condição de país médio quanto à renda, ao desenvolvimento e, quem sabe, ao espírito cívico.
A preocupação nacional com a corrupção pode contribuir para que cruzemos a barreira da mediocridade. Não só para estabelecer como inaceitável que brasileiros sejam forçados a apelar à propina nas suas relações com o Estado. Sobretudo, temos nesse cenário a oportunidade de suscitar um debate mais geral sobre a qualidade do Estado, em especial sobre sua relação desejável com a sociedade civil.
É compreensível que a discussão atual verse especialmente sobre o tamanho do Estado, dada a catástrofe do intervencionismo econômico recente. Entretanto, não deveríamos esquecer que um Estado mínimo pode padecer das mesmas mazelas que um Estado inflado. Na Colômbia, 4% da população está empregada no setor público (um quarto do percentual brasileiro, segundo a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico). Resta que, na pesquisa da Transparência Internacional, 30% dos colombianos confessaram pagamento de propina a funcionários públicos, mais do que nos países do Cone Sul. Um Estado enxuto não equivale por si só a um Estado mais honesto.
Na sua crítica ao estatismo, a economista Deirdre McCloskey (com participação recente no Fronteiras do Pensamento) reconhece a pertinência dessa distinção, evocando a Itália como exemplo de um Estado corrompido e a Suécia como emblema do Estado presente em que as coisas funcionam. No Brasil, reformas em prol da probidade de um Estado em que as coisas funcionam poderiam unir centro-esquerda e centro-direita, os adeptos da social-democracia e os do Estado austero, deixados a resolver suas discordâncias quanto ao tamanho do Estado à medida que avançarmos a um patamar mínimo de qualidade, condição de sucesso às políticas de ambas as correntes.
Além disso, um tal consenso, pragmático e modernizante, seria bem-vindo no momento em que a política das identidades ganha força à esquerda e à direita, tensionando o sistema aos extremos às vésperas de um ano eleitoral.