Carlos Alberto Gianotti
A vida anda e as ansiedades se vão imbricando no existir de homens e mulheres bem-pensantes ou empreendedores. Estes, numa espécie de compensação psicológica para as aflições cotidianas, entre outros estereótipos, esdruxulamente passaram a agregar ao discurso cotidiano, sem que se possa entender o exato porquê, palavras “novas” e espertas de autoengano, compensatórias dos desnorteios plasmados pela contemporaneidade. Dir-se-ia: vocábulos tentativos da elisão da desarmonia do psicossocial. Desse quilate, entre outros tantos quase neologismos, podem-se mencionar inovação, reinvenção, empreendedorismo, gestão estratégica, protagonismo, sustentabilidade, transparência. Palavras como essas, embora aplicadas com aparente substrato de veracidade, muitas vezes são o envoltório de uma contrafação da pragmática.
Hoje, há empresas com diretoria de inovação e universidades com pró-reitoria de inovação; qualquer empreendimento tem de ser sustentável (seja isso lá o que for); gestão pública ou privada precisa ser transparente existindo sites e ONGs vigilantes guardiães das transparências institucionais, e até um Ministério da Transparência.
O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han escreveu um belo ensaio intitulado A Sociedade da Transparência (Relógio D’Água, 2014) no qual analisa a modernidade transparente e os males originados dessa disposição de transparência – palavra da lista recém apresentada – na nossa época do desempenho.
Até alguns anos atrás, aplicava-se a palavra transparente como predicado daquilo através do qual se pode enxergar o que está por trás. Agora, prescreve-se que em tudo o que o outro faz tem de haver transparência, isto é, deve contar com a condição de ser transparente, pois se impõe ver com nitidez plena o que aquele alguém está a desenvolver ou desenvolveu.
La Loi du Marché, nomeado por aqui como O Valor de um Homem, é o título de um tocante filme do cineasta francês Stéphane Brizé, 2015, relatando as agruras de um indivíduo, o tristonho Thierry, que, tendo perdido o emprego e precisando sustentar sua família, mulher e um filho com deficiência psicomotora, acaba por aceitar trabalho como segurança em um supermercado.
O estabelecimento conta com dezenas de câmeras cujas lentes, em tempo integral, "varrem" os corredores para que um segurança, defronte a monitores ocultos, possa observar os clientes e detectar possíveis furtos de mercadorias e também controlar o modo de agir de seus funcionários. Ao cabo de alguns flagrantes de subtrações de mercadorias e de comportamentos inadequados de empregados, diante das situações humilhantes a que estes eram submetidos para confessar o que fizeram, Thierry prefere abandonar o emprego. Para além de estampar a lei do mercado, Brizé mostra a transparência em seu sentido mais estrito e simples, aquele analisado por Han em seu ensaio: a transparência é para quem deseja enxergar o que o outro faz e em quem não confia; é unilateral, porque o observado não observa o observador, a ação dá-se num só sentido.
Ademais, é uma ideia apenas associada – equivocadamente – a negócios, sejam relacionados ao poder público ou a pessoas jurídicas. (Não se considerarão aqui, por exemplo, como modalidade de transparência imposta, os cookies de rastreamento, ou as autoexposições pueris pelas redes sociais digitais.) É vista estritamente como uma prática salutar, bacana, democrática (a democratização da vigilância), para evitar ilícitos, corrupções, demonstrativa de como se bem age, pois (quase) tudo está às claras para todos, mormente para o que desconfia.
E aí está o busílis: desconfiança.
A transparência aniquila a confiança, que desde sempre foi a possibilitadora de qualquer relação com o outro; isto é, a transparência transparece, ademais, ausência de confiança.
O politicamente correto da moderna demanda por transparência surge como poder de controle, como eliminador da confiança, como aniquilador de qualquer singularidade, logo, como produtor da uniformidade inexpressiva.