
Quando o mecânico aposentado Elton Anselmo resolveu promover um curso gratuito de mecânica para mulheres, não imaginou que a procura seria tão grande. Foram mais de três mil e-mails solicitando uma vaga na turma de 20 alunas. Segundo ele, a aula não pode ser ministrada para muita gente para que todas recebam atenção. O curso, com duração de três horas, aconteceu na quinta-feira (24) à noite no Emec Centro Automotivo, em Porto Alegre, e atraiu de jovens a aposentadas.
Elton conta que alguns homens chegaram a fazer contato para reclamar que o curso não se estendia a eles. O motivo de o evento ser apenas para mulheres, segundo o organizador, era fazer com que elas se sentissem à vontade para falar e perguntar o que quisessem.
– Se fosse uma turma mista, provavelmente as mulheres ficariam com vergonha de perguntar alguma coisa. Só entre elas, isso não acontece – afirma o mecânico.
Considerado uma necessidade e não mais um luxo, o carro faz parte da rotina de milhares de mulheres. Conforme o Detran-RS, dados de 2017 mostram que Porto Alegre tem 270 mil condutoras habilitadas. No Estado, esse número chega a 1,64 milhão. Uma pesquisa realizada em 2012, no Reino Unido, mostrou que, das 4 mil mulheres entrevistadas, 31% se sentia enganada ou intimidada quando levavam o carro a uma oficina mecânica. Por aqui, a sensação de insegurança na hora de levar o veículo para arrumar também apareceu como o principal motivo para as alunas da turma procurarem o curso.
Elton, que está na área há 30 anos, é dono de uma oficina e dá aulas de mecânica. Ele conta que a ideia de proporcionar essas aulas para mulheres surgiu das experiências que teve com clientes que passaram por situações duvidosas em outros estabelecimentos.
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– Por várias vezes aconteceu de eu fazer a revisão no carro de clientes que iam viajar e, quando elas chegavam no Litoral, por exemplo, iam a algum posto de gasolina ou oficina mecânica em que os atendentes diziam que era preciso trocar o óleo ou alguma peça. Coisas que já haviam sido feitas na revisão. Então, ou elas trocavam e gastavam desnecessariamente, ou me ligavam bravas – conta Elton.
O ensinamento inicial do curso foi um alerta: é preciso saber com quem deixamos o nosso carro. Segundo Elton, é importante verificar se a oficina tem certificados que comprovem o preparo dos profissionais. Ele diz que os sistemas dos carros evoluem constantemente, e que é importante fazer cursos e estar sempre atualizado.
Entre as participantes do curso estava a aposentada Cleonice Fontoura, 66 anos. Ela havia feito a habilitação para dirigir recentemente quando ficou viúva e herdou o automóvel do marido. Foi quando percebeu que sabia muito pouco sobre carros – e que não se interessava muito sobre o assunto. Porém diz que passou a ficar inconformada em ter de aceitar passivamente o diagnóstico de um mecânico ou a sugestão de algum frentista.
– Procurei o curso porque já estou no terceiro carro e quero entender mais sobre o assunto. Conquistei o carro que eu sempre quis ter, uma Ecosport, e quero saber o que é preciso fazer nas horas necessárias – diz Cleonice.
Foi justamente para não ficar refém daquilo que o mecânico diz que a servidora pública Eunice Costa, 52 anos, também procurou o curso. Ela conta que toda vez que precisava ir a uma oficina, se deparava com a insegurança de não saber se o mecânico estava dizendo a verdade, o que a fazia sentir-se fragilizada diante da situação.
– Eu acho esse curso muito simbólico porque, há alguns anos, seria inimaginável que um grupo mulheres se reunisse depois de um dia exaustivo de trabalho para fazer um curso de mecânica destinado somente a elas. Isso mostra que a mulher está querendo mais, ela quer dominar e se empoderar, conhecer o instrumento do qual ela faz uso todos os dias – afirma Eunice.
Toda a empolgação de Eunice se refletia no restante da turma, que quis adiar o intervalo por duas vezes, tamanho o interesse no conteúdo.
Dulce Mary Rodrigues, que é contadora aposentada e divide o carro com outros familiares, procurou o curso por um motivo diferente da insegurança: quer saber conversar com o mecânico e ter autonomia, mas também quer saber falar sobre o carro com o marido e o filho.
– Lá em casa, todos são responsáveis por cuidar do veículo. Às vezes, quando eu converso com minha família e falamos sobre o carro, meu marido diz uma coisa, meu filho diz outra, e eu não sei dizer quem está correto, então, procurei o curso para me informar – conta Dulce.
Machismo ainda é muito presente nas oficinas
Francine Bergenthal tem 25 anos e é formada em arquivologia. No entanto, conforme ela mesma diz, essa é só uma das milhares de coisas que a compõem. Há nove meses ela trabalha na Emec Centro Automotivo, no setor administrativo. Mas seu interesse mesmo é pela parte mecânica. Foi ela quem fez a introdução do curso para a turma de quinta-feira. Depois que Elton assumiu a aula, volta e meia ela pedia licença para acrescentar alguma coisa que achava importante.
Fran, como gosta de ser chamada, costuma acompanhar o trabalho dos mecânico para aprender. Ela conta que quis fazer um curso de mecânica profissionalizante, que tem duração mínima de dois anos. Entretanto, chegou à conclusão de que não valeria a pena, já que o curso focava mais na parte teórica e, como ela já estava trabalhando na oficina, tem acesso à teoria e à prática como se fosse uma aula particular, só que sem certificado.

Francine diz que não encontrou, em Porto Alegre, nenhuma mulher que tenha formação para trabalhar com mecânica de carros. E que o machismo está ainda muito presente nesse ramo profissional.
– Quando liguei para saber do curso, perguntaram em nome de quem eu estava ligando e ficaram surpresos ao saber que era para uma mulher. Já no dia a dia da oficina, tenho uma coleção de histórias machistas com as quais estou aprendendo a lidar. Tento responder para as pessoas de uma forma que elas percebam a forma como agiram e possam refletir sobre isso. Muitas vezes, a pessoa nem percebe a gravidade do que esta reproduzindo em pleno 2017 – relata Francine.
Para conseguir fazer o evento gratuitamente, Elton buscou apoio da Vila Flores, comunidade que ajuda a desenvolver práticas empreendedoras colaborativas. O objetivo do curso era mostrar para as alunas os sistemas que compõem um carro e dar informações básicas sobre o assunto. O suficiente para elas saberem conversar com quem for arrumar o veículo e não cair nas ciladas mais comuns.
Veja cinco dicas básicas sobre alguns sistemas dos veículos:
1. Transmissão/Embreagem: lembrar de tirar o pé do pedal da embreagem enquanto dirige, já que isso causa um desgaste prematuro no sistema. Para os carros automáticos, é importante trocar o óleo da caixa de câmbio a cada 30 mil quilômetros.
2. Suspensão: é conveniente fazer geometria e balanceamento a cada 15 mil quilômetros, já que com isso, todo o sistema de suspensão será revisado.
3. Arrefecimento: só é possível verificar o aditivo quando o carro está frio. A troca e limpeza devem ser feitas a cada 30 mil quilômetros, a não ser que haja algum tipo de vazamento.
4. Motor: o nível do óleo só poderá ser medido corretamente quando o motor estiver frio (medir no posto de gasolina quando o motor está quente é perda de tempo). É essencial estar em dia com a troca do óleo, que deve ser feita a cada 10 mil quilômetros rodados.
5. Painel: as cores das luzes do painel são indicativas e não devem ser ignoradas, pois as consequências podem ser sérias. Um exemplo é a sinaleira: vermelha indica risco, amarela sugere a verificação e verde indica bom funcionamento.