Uma foto da atriz Emma Watson, ícone jovem da luta feminista, dividiu o debate entre ativistas pelo mundo. Embaixadora do programa ONU Mulheres para igualdade de gênero, Emma posou para uma revista de moda com parte dos seios à mostra. Essa divergência de pensamentos entre as próprias mulheres parece, para quem enxerga de fora, uma contradição à união proposta pelo feminismo. Para Flávia Biroli, professora de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), o debate sobre a polêmica de Emma tem o mesmo fim: discutir igualdade de gêneros.
– Para algumas mulheres, mostrar os seios significa uma recusa a padrões. Afinal, um homem, quando sai sem camisa, não é algo que a gente perceba. Mas, ao mesmo tempo, a objetificação dos corpos das mulheres é um elemento central da violência. Isso marca as diferenças que são importantes. Elas têm a ver com o entendimento do caminho que leva para a igualdade de gênero – afirma a autora de Feminismo e Política (Boitempo Editorial, 2014).
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O movimento feminista tornou-se plural ao longo do tempo. Na última década, como explica a historiadora Mary Del Priore, explodiu em milhares de tendências, que resultaram em um maior entendimento da pauta feminista.
– (As tendências feministas vão) desde Beyoncé, que usa o seu corpo como empoderamento, uma coisa que as feministas tradicionais e pioneiras sempre odiaram, que é usar a beleza para isso, chegando ao pessoal do Sillicon Valley (Vale do Silício), que trabalha com comunicação e com internet e acredita que o dinheiro dá liberdade para empoderar as mulheres – considera.
No Brasil, onde as mulheres são maioria – 51% da população –, nem todas travam as mesmas lutas ou se enxergam perante a sociedade da mesma forma. Para falar em feminismo, é preciso enxergar a pluralidade dos movimentos que o constroem. Por isso, ZH falou com diferentes mulheres, sejam elas ativistas ou pesquisadoras, para compreender essa diversidade dentro de um mesmo propósito.
Mulheres negras querem espaço
A agenda do movimento feminista no Brasil começou com mulheres brancas, de classe média e intelectuais, explica a historiadora Mary Del Priore. Por isso, quando a luta sobre igualdade de gênero passou a ganhar visibilidade, mulheres de diferentes camadas sociais tiveram de se organizar para enfrentar as mesmas questões, como violência e desigualdade de funções em casa e no trabalho, a partir da realidade de seus cotidianos.
– O feminismo negro só surgiu pelo fato de as negras não terem suas especificidades tratadas dentro do movimento – diz a mineira Luana Tolentino, professora e historiadora de 33 anos que é uma das faces do movimento feminista negro no país.
Luana relata que a principal questão da luta pelas mulheres negras é o reconhecimento como indivíduo. Para ela, na cultura brasileira, a negra é lembrada pelo corpo. A historiadora reforça a importância de se organizarem para terem reivindicações atendidas.
– Nosso contexto é completamente diferente. A situação de vantagem das brancas é inquestionável. Por muito tempo, fomos silenciadas dentro do movimento feminista, mas acredito que é importante dialogar, aproximar-se. O objetivo é a emancipação de todas – afirma.
A cientista política Flávia Biroli enxerga com clareza que, em pautas como a criminalização do aborto, a violência doméstica e a maternidade, as mulheres negras ficam em desvantagem social. Mudar a legislação brasileira, que criminaliza o aborto, por exemplo, é uma das pautas mais evidentes do movimento atual. Pela relevância social, o feminismo negro tem assumido a luta pela descriminalização do aborto com mais força.
– Quem mais sofre com o aborto clandestino e quem é presa ao buscar atendimento médico após um procedimento fora da lei é a mulher negra e pobre. A criminalização atinge todas as mulheres, mas os efeitos são mais graves sobre as pobres e negras – afirma.
A revolução da Marcha das Vadias
Maria Fernanda Geruntho Salaberry, 30 anos, organiza a Marcha das Vadias desde 2012 em Porto Alegre. Símbolos da manifestação feminista jovem, o fim da cultura do estupro e a liberdade sexual eram vistos entre as principais reivindicações de mulheres que se concentravam nas ruas.
– A pauta tem ciclos. Nos últimos anos, temos questões muito relacionadas à vida privada, às roupas, à violência, à divisão das tarefas domésticas relativas aos filhos. Estamos num período de discussão do cotidiano da mulher – elenca.
O nome Marcha das Vadias surgiu como SlutWalk, no Canadá. A ideia inspirou as brasileiras. Nesses movimentos, o princípio de sororidade é global. Com a internet, as pautas e os casos marcantes de violência contra mulher e de machismo, em qualquer país, as motivam a ir às ruas. Um exemplo foram as manifestações Nenhuma a Menos, após estupro e assassinato de uma adolescente argentina no ano passado.
– Como a dinâmica das redes sociais e do próprio movimento é muito rápida, a pauta é melhor elaborada a cada vez. As redes sociais nos possibilitam falar sobre a violência, há facilidade do anonimato para se preservar – ressalta.
Maria Fernanda também comenta o caráter lúdico das marchas. Com muitos cartazes coloridos e cores, as mulheres convocadas para o movimento vão às ruas de sutiã ou com os seios à mostra. Para ela, isso atraiu a geração mais jovem, que trouxe ao debate o lema Meu Corpo, Minhas Regras.
– Isso é um enfrentamento, é dizer que eu estou de sutiã e mereço respeito – afirma.
Mãe de uma menina de 12 anos, Maria Fernanda vê esperança nas gerações futuras:
– Ela (a filha) já discute o feminismo. Eu não discutia. Isso é um avanço na garantia de direitos, a gente tem uma geração que já se dá conta de que tem de reivindicar o direito de andar na rua e de poder ter relacionamentos que não sejam abusivos.
Por mais atenção na vida pública
Nas eleições municipais de 2016, o número de mulheres eleitas ao cargo de prefeita representa cerca de 11% dos escolhidos a chefe da administração municipal no Brasil. Em um ranking da União Interparlamentar sobre representatividade feminina no Congresso, o país fica na 154ª posição entre 190 países. Com as crises econômica e política e o impeachment da primeira mulher presidente do país, Dilma Rousseff, o envolvimento com políticas públicas e eleitorais voltou a ser um tema forte dos movimentos. Neste 8 de março, as organizações feministas, por exemplo, têm como foco a reforma da previdência, que prejudicaria as mulheres devido à dupla jornada – no trabalho e em casa –, enfatiza a cientista política Flávia Biroli. Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2015 mostram que a jornada média das mulheres é de 53,6 horas por semana, e a dos homens, de 46,1 horas.
Segundo Flávia, essa seria uma das políticas que impacta ainda mais a divisão dos trabalhos por gênero:
– É o recuo do Estado, que vai dar menos amparo para a mulher atuar, tanto no trabalho quanto na vida política.
A pesquisadora, que é autora de um livro sobre feminismo e política, enxerga nos partidos mecanismos que excluem a mulher.
– Os financiamentos são direcionados apenas para os homens. Não é à toa que a ampla maioria de candidatas que teve nenhum voto é mulher. Os partidos são punidos se não preenchem as cotas de candidaturas, mas não investem nas candidatas.
Movimento gay e as individualidades
Assim como o feminismo negro, o reconhecimento surge como pauta também entre as mulheres do movimento gay.
– As mulheres lésbicas, muitas já assumidas, entraram para o movimento feminista como uma possibilidade de luta. Eu não vejo diferença entre os dois movimentos, queremos os mesmos direitos e, dentro do movimento, essa é a nossa pauta: o reconhecimento de que nem todas são hetero e nem todas vivemos a mesma condição de sexualidade – afirma Roselaine Dias, articuladora nacional da Liga Brasileira de Lésbicas.
A historiadora Mary Del Priore destaca que essa seja uma das principais pautas dos movimentos hoje: o reconhecimento das individualidades de cada uma, inclusive entre as próprias mulheres. Mary faz questão de frisar que as próprias brasileiras ainda são machistas, racistas e homofóbicas.
– Raramente queremos enxergar a capacidade que a mulher tem de fazer mal a outra. O potencial de violência entre as mulheres ainda não está sendo bem estudado – diz Mary.